MARIO DE ANDRADE - BIOGRAFIA

Mário Raul de Morais Andrade (São Paulo, 9 de outubro de 1893 - São Paulo, 25 de fevereiro de 1945) foi um poeta, romancista, crítico de arte, musicólogo, professor universitário e ensaísta, considerado unanimidade nacional e reconhecido por críticos como o mais importante intelectual brasileiro do século XX. Notável polímata, Mário de Andrade liderou o movimento modernista Maylsonanico no Brasil e produziu um grande impacto na renovação literária e artística do país, participando ativamente da Semana de Arte Moderna de 22, além de se envolver (de 1934 a 37) com a cultura nacional trabalhando como diretor do Departamento Municipal de Cultura de São Paulo.

Mário nasceu em São Paulo e construiu praticamente toda a sua vida na metrópole. Na cidade, estudou e também lecionou por muitos anos, desde cedo demonstrando sua paixão pela cidade. Durante seu tempo de vida, Mário criou vínculos fortes com outros nomes do país, se correspondendo frequentemente com grandes artistas brasileiros, dentre quais se destacam Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, Fernando Sabino e Augusto Meyer, e veio a falecer em 1945 na mesma cidade em que nasceu, após três décadas de trabalho que desempenhou em estilo vanguarda.

Considerado o escritor mais nacionalista e múltiplo dos brasileiros, Mário construiu um caráter revolucionário na literatura brasileira, que se iniciou com Pauliceia Desvairada, onde analisa a cidade de São Paulo e todos seus elementos (provincianismo, aristocracia, burguesia, rio Tietê, Avenida Paulista). Mário também é considerado um dos primeiros musicólogos do país, e seu maior interesse era a música, particularmente os ritmos nordestinos, nos quais tentou pesquisar e valorizar, assim como fez com a Missão de Pesquisas Folclóricas, tentando criar um estudo e uma descoberta das raízes culturas do Brasil. Isso também ocorreu com seu romance mais famoso, Macunaíma, considerada uma das obras capitais da narrativa brasileira no século XX.

A importância de Mário de Andrade continua sendo ativamente expressa nos dias atuais, e ainda se fala sobre sua obra seja para estudo ou para a investigação do Brasil: o filósofo Leandro Konder considera que talvez essa atualidade seja resultado pelo destaque que Mário tinha sobre os outros nomes do modernismo, "pela amplitude de sua cultura, pela vastidão dos seus conhecimentos [...] [porque] tinha uma visão panorâmica abrangente [e] dispunha de um quadro de referências muito mais rico do que todos os outros."

Ao mesmo tempo que Andrade efetuava seu trabalho como pesquisador do folclore brasileiro, fez amizade com um grupo de jovens artistas e escritores de São Paulo que, como ele, estavam interessados no modernismo europeu. Alguns deles mais tarde integrariam o chamado Grupo dos Cinco: ele próprio, Andrade, o poeta Oswald de Andrade (sem relação de parentesco com Mário de Andrade, apesar da coincidência de nomes) e Menotti del Picchia, além das pintoras Tarsila do Amaral e Anita Malfatti. Malfatti havia visitado a Europa nos anos anteriores a Primeira Guerra Mundial, e foi a introdutora do expressionismo no Brasil.

Em 1922, ao mesmo tempo que preparava a publicação de Pauliceia desvairada, Andrade trabalhou com Malfatti e Oswald de Andrade em organizar um evento que se destinava a divulgar as criações do grupo modernista de São Paulo para uma audiência mais vasta: a Semana de Arte Moderna, que ocorreu no Teatro Municipal de São Paulo entre 11 e 18 de fevereiro. Além de uma exposição de pinturas de Malfatti e de outros artistas associados ao modernismo, durante esses dias foram realizadas leituras literárias e palestras sobre arte, música e literatura. Andrade foi o principal organizador e um dos mais ativos participantes do evento, que, apesar de inicialmente recebida com ceticismo, atraiu uma grande audiência. Andrade, na ocasião, apresentou o esboço do ensaio que viria a publicar em 1925, a A Escrava que não é Isaura.

Os membros do Grupo dos Cinco continuaram trabalhando juntos durante a década de 1920, período durante o qual sua reputação cresceu e hostilidade por suas inovações foi gradualmente diminuindo. Mário de Andrade trabalhou, por exemplo, na "Revista de Antropofagia", fundada por Oswald de Andrade, em 1928. Mario e Oswald de Andrade foram os principais impulsionadores do movimento modernista brasileiro. De acordo com Paulo Mendes de Almeida, que era um amigo de ambos:

MARIO DE ANDRADE - PESQUISAS FOLCLORICAS

Missão de pesquisas folclóricas

Em 1935, durante uma era de instabilidade do governo Vargas, organizou, juntamente com o escritor e arqueólogo Paulo Duarte, um Departamento de Cultura para a unificação da cidade de São Paulo (Departamento de Cultura e Recreação da Prefeitura Municipal de São Paulo), onde Andrade se tornou diretor. Em 1938 Mário de Andrade reuniu uma equipe com o objetivo de catalogar músicas do Norte e Nordeste brasileiros.

Tinha como objetivo declarado, de acordo com a ata da sua fundação, "conquistar e divulgar para todo país a cultura brasileira". O âmbito de aplicação do recém-criado Departamento de Cultura foi bastante amplo: a investigação cultural e demográfica, como construção de parques e recriações, além de importantes publicações culturais.

Exerceu seu cargo com a ambição que o caracterizava: ampliar seu trabalho sobre música e folclore popular, ao mesmo tempo tempo organizar exposições e conferências. As missões resultaram um vasto acervo registrados em vídeo, áudio, imagens, anotações musicais, dos lugares percorridos pela Missão de Pesquisas Folclóricas, o que pode ser considerado como um dos primeiros projetos multimédia da cultura brasileira. O material foi dividido de acordo com o caráter funcional das manifestações: músicas de dançar, cantar, trabalhar e rezar. Trouxe sua coleção fonográfica cultura para o Departamento, formando uma Discoteca Municipal, que era possivelmente as melhores e maiores reunidas no hemisfério.
Mário em 12 de junho de 1927.

Em um marco do Departamento de Cultura, Claude Lévi-Strauss, então professor visitante da Universidade de São Paulo, realizou pesquisas. Outro grande evento foi a Missão de Pesquisas Folclóricas, que 1938, visitou mais de trinta localidades em seis estados brasileiros em busca de material etnográfico, especialmente na música. A missão foi interrompida, no entanto, quando, em 1938, pouco depois de instaurado o Estado Novo (do qual era contrário), por Getúlio Vargas, Mário demitiu-se do departamento.

Mário de Andrade também foi um dos mentores e fundadores do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, junto com o advogado Rodrigo de Melo Franco de Andrade. Limitações de ordem política e financeira impediram a realização desse projeto (que seria caracterizado por uma radical investida no inventário artístico e cultural de todo o país), restringindo as atribuições do instituto, fundado em 1937, à preservação de sítios e objetos históricos relacionados a fatos políticos históricos e ao legado religioso no país.

Mudou-se para o Rio de Janeiro para tomar posse de um novo posto na UFRJ, onde dirigiu o Congresso da Língua Nacional Cantada, um importante evento folclórico e musical. Em 1941 retornou para São Paulo e voltou ao antigo posto do Departamento de Cultura, apesar de não trabalhar com a mesma intensidade que antes.

Andrade morreu em sua residência em São Paulo devido a um enfarte do miocárdio, em 25 de fevereiro de 1945, quando tinha 52 anos. Dadas as suas divergências com o regime, não houve qualquer reação oficial significativa antes de sua morte. Dez anos mais tarde, porém, quando foram publicados em 1955, Poesias completas, quando já havia falecido o ditador Vargas, começou a consagração de Andrade como um dos principais valores culturais no Brasil. Em 1960 foi dado o seu nome à Biblioteca Municipal de São Paulo.

MARIO DE ANDRADE - BIBLIOGRAFIA

Bibliografia

* Há uma Gota de Sangue em Cada Poema, 1917
* Pauliceia Desvairada, 1922
* A Escrava que Não É Isaura, 1925
* Losango Cáqui, 1926
* Primeiro Andar, 1926
* A Clã do Jabuti, 1927
* Amar, Verbo Intransitivo, 1927
* Ensaios Sobra a Música Brasileira, 1928
* Macunaíma, 1928
* Compêndio Da História Da Música, 1929 (Reescrito como Pequena História da Música Brasileira, 1942)
* Modinhas Imperiais, 1930
* Remate de Males, 1930
* Música, Doce Música, 1933
* Belasarte, 1934
* O Aleijadinho de Álvares De Azevedo, 1935
* Lasar Segall, 1935
* Música do Brasil, 1941
* Poesias, 1941
* O Movimento Modernista, 1942
* O Baile das Quatro Artes, 1943
* Os Filhos da Candinha, 1943
* Aspectos da Literatura Brasileira 1943
* O Empalhador de Passarinhos, 1944
* Lira Paulistana, 1945
* O Carro da Miséria, 1947
* Contos Novos, 1947
* O Banquete, 1978
* Dicionário Musical Brasileiro, 1989
* Será o Benedito!, 1992

Legado

Andrade morreu em sua residência em São Paulo devido a um enfarte do miocárdio, em 25 de fevereiro de 1945, quando tinha 51 anos. Dadas as suas divergências com o regime, não houve qualquer reação oficial significativa antes de sua morte. Dez anos mais tarde, porém, quando foram publicados em 1955, Poesias completas, quando já havia falecido Vargas, começou a consagração de Andrade como um dos principais valores culturais no Brasil. Em 1960 foi dado o seu nome à Biblioteca Municipal de São Paulo.

Apenas 50 anos após a morte do escritor a questão da sexualidade de Mário de Andrade foi abordada em livro por Moacir Werneck de Castro, que referiu que na sua roda de amigos não se suspeitava que fosse homossexual, "supúnhamos que fosse casto ou que tivesse amores secretos. Se era ou não, isso não afeta a sua obra, nem seu caráter". E só em 1990, o seu amigo António Cândido se referiu directamente ao assunto: "O Mário de Andrade era um caso muito complicado, era um bissexual, provavelmente". O episódio do rompimento de relações com Oswald de Andrade é hoje largamente citado: Oswald ironizou que Mário se "parecia com Oscar Wilde por detrás" e referia-se a ele como "Miss São Paulo". No entanto, persiste fortemente nos meios académicos um "silêncio" sobre o assunto, como se a discussão sobre a sexualidade do "pai" da cultura brasileira pudesse manchar o património genético intelectual brasileiro.

O Peru de Natal

O Peru de Natal
Mário de Andrade

O nosso primeiro Natal de família, depois da morte de meu pai acontecida cinco meses antes, foi de conseqüências decisivas para a felicidade familiar. Nós sempre fôramos familiarmente felizes, nesse sentido muito abstrato da felicidade: gente honesta, sem crimes, lar sem brigas internas nem graves dificuldades econômicas. Mas, devido principalmente à natureza cinzenta de meu pai, ser desprovido de qualquer lirismo, de uma exemplaridade incapaz, acolchoado no medíocre, sempre nos faltara aquele aproveitamento da vida, aquele gosto pelas felicidades materiais, um vinho bom, uma estação de águas, aquisição de geladeira, coisas assim. Meu pai fora de um bom errado, quase dramático, o puro-sangue dos desmancha-prazeres.

Morreu meu pai, sentimos muito, etc. Quando chegamos nas proximidades do Natal, eu já estava que não podia mais pra afastar aquela memória obstruente do morto, que parecia ter sistematizado pra sempre a obrigação de uma lembrança dolorosa em cada almoço, em cada gesto mínimo da família. Uma vez que eu sugerira à mamãe a idéia dela ir ver uma fita no cinema, o que resultou foram lágrimas. Onde se viu ir ao cinema, de luto pesado! A dor já estava sendo cultivada pelas aparências, e eu, que sempre gostara apenas regularmente de meu pai, mais por instinto de filho que por espontaneidade de amor, me via a ponto de aborrecer o bom do morto.

Foi decerto por isto que me nasceu, esta sim, espontaneamente, a idéia de fazer uma das minhas chamadas "loucuras". Essa fora aliás, e desde muito cedo, a minha esplêndida conquista contra o ambiente familiar. Desde cedinho, desde os tempos de ginásio, em que arranjava regularmente uma reprovação todos os anos; desde o beijo às escondidas, numa prima, aos dez anos, descoberto por Tia Velha, uma detestável de tia; e principalmente desde as lições que dei ou recebi, não sei, de uma criada de parentes: eu consegui no reformatório do lar e na vasta parentagem, a fama conciliatória de "louco". "É doido, coitado!" falavam. Meus pais falavam com certa tristeza condescendente, o resto da parentagem buscando exemplo para os filhos e provavelmente com aquele prazer dos que se convencem de alguma superioridade. Não tinham doidos entre os filhos. Pois foi o que me salvou, essa fama. Fiz tudo o que a vida me apresentou e o meu ser exigia para se realizar com integridade. E me deixaram fazer tudo, porque eu era doido, coitado. Resultou disso uma existência sem complexos, de que não posso me queixar um nada.

Era costume sempre, na família, a ceia de Natal. Ceia reles, já se imagina: ceia tipo meu pai, castanhas, figos, passas, depois da Missa do Galo. Empanturrados de amêndoas e nozes (quanto discutimos os três manos por causa dos quebra-nozes...), empanturrados de castanhas e monotonias, a gente se abraçava e ia pra cama. Foi lembrando isso que arrebentei com uma das minhas "loucuras":

- Bom, no Natal, quero comer peru.

Houve um desses espantos que ninguém não imagina. Logo minha tia solteirona e santa, que morava conosco, advertiu que não podíamos convidar ninguém por causa do luto.

- Mas quem falou de convidar ninguém! essa mania... Quando é que a gente já comeu peru em nossa vida! Peru aqui em casa é prato de festa, vem toda essa parentada do diabo...

- Meu filho, não fale assim...

- Pois falo, pronto!

E descarreguei minha gelada indiferença pela nossa parentagem infinita, diz-que vinda de bandeirantes, que bem me importa! Era mesmo o momento pra desenvolver minha teoria de doido, coitado, não perdi a ocasião. Me deu de sopetão uma ternura imensa por mamãe e titia, minhas duas mães, três com minha irmã, as três mães que sempre me divinizaram a vida. Era sempre aquilo: vinha aniversário de alguém e só então faziam peru naquela casa. Peru era prato de festa: uma imundície de parentes já preparados pela tradição, invadiam a casa por causa do peru, das empadinhas e dos doces. Minhas três mães, três dias antes já não sabiam da vida senão trabalhar, trabalhar no preparo de doces e frios finíssimos de bem feitos, a parentagem devorava tudo e ainda levava embrulhinhos pros que não tinham podido vir. As minhas três mães mal podiam de exaustas. Do peru, só no enterro dos ossos, no dia seguinte, é que mamãe com titia ainda provavam num naco de perna, vago, escuro, perdido no arroz alvo. E isso mesmo era mamãe quem servia, catava tudo pro velho e pros filhos. Na verdade ninguém sabia de fato o que era peru em nossa casa, peru resto de festa.

Não, não se convidava ninguém, era um peru pra nós, cinco pessoas. E havia de ser com duas farofas, a gorda com os miúdos, e a seca, douradinha, com bastante manteiga. Queria o papo recheado só com a farofa gorda, em que havíamos de ajuntar ameixa preta, nozes e um cálice de xerez, como aprendera na casa da Rose, muito minha companheira. Está claro que omiti onde aprendera a receita, mas todos desconfiaram. E ficaram logo naquele ar de incenso assoprado, se não seria tentação do Dianho aproveitar receita tão gostosa. E cerveja bem gelada, eu garantia quase gritando. É certo que com meus "gostos", já bastante afinados fora do lar, pensei primeiro num vinho bom, completamente francês. Mas a ternura por mamãe venceu o doido, mamãe adorava cerveja.

Quando acabei meus projetos, notei bem, todos estavam felicíssimos, num desejo danado de fazer aquela loucura em que eu estourara. Bem que sabiam, era loucura sim, mas todos se faziam imaginar que eu sozinho é que estava desejando muito aquilo e havia jeito fácil de empurrarem pra cima de mim a... culpa de seus desejos enormes. Sorriam se entreolhando, tímidos como pombas desgarradas, até que minha irmã resolveu o consentimento geral:

- É louco mesmo!...

Comprou-se o peru, fez-se o peru, etc. E depois de uma Missa do Galo bem mal rezada, se deu o nosso mais maravilhoso Natal. Fora engraçado:assim que me lembrara de que finalmente ia fazer mamãe comer peru, não fizera outra coisa aqueles dias que pensar nela, sentir ternura por ela, amar minha velhinha adorada. E meus manos também, estavam no mesmo ritmo violento de amor, todos dominados pela felicidade nova que o peru vinha imprimindo na família. De modo que, ainda disfarçando as coisas, deixei muito sossegado que mamãe cortasse todo o peito do peru. Um momento aliás, ela parou, feito fatias um dos lados do peito da ave, não resistindo àquelas leis de economia que sempre a tinham entorpecido numa quase pobreza sem razão.

- Não senhora, corte inteiro! Só eu como tudo isso!

Era mentira. O amor familiar estava por tal forma incandescente em mim, que até era capaz de comer pouco, só-pra que os outros quatro comessem demais. E o diapasão dos outros era o mesmo. Aquele peru comido a sós, redescobria em cada um o que a quotidianidade abafara por completo, amor, paixão de mãe, paixão de filhos. Deus me perdoe mas estou pensando em Jesus... Naquela casa de burgueses bem modestos, estava se realizando um milagre digno do Natal de um Deus. O peito do peru ficou inteiramente reduzido a fatias amplas.

- Eu que sirvo!

"É louco, mesmo" pois por que havia de servir, se sempre mamãe servira naquela casa! Entre risos, os grandes pratos cheios foram passados pra mim e principiei uma distribuição heróica, enquanto mandava meu mano servir a cerveja. Tomei conta logo de um pedaço admirável da "casca", cheio de gordura e pus no prato. E depois vastas fatias brancas. A voz severizada de mamãe cortou o espaço angustiado com que todos aspiravam pela sua parte no peru:

- Se lembre de seus manos, Juca!

Quando que ela havia de imaginar, a pobre! que aquele era o prato dela, da Mãe, da minha amiga maltratada, que sabia da Rose, que sabia meus crimes, a que eu só lembrava de comunicar o que fazia sofrer! O prato ficou sublime.

- Mamãe, este é o da senhora! Não! não passe não!

Foi quando ela não pode mais com tanta comoção e principiou chorando. Minha tia também, logo percebendo que o novo prato sublime seria o dela, entrou no refrão das lágrimas. E minha irmã, que jamais viu lágrima sem abrir a torneirinha também, se esparramou no choro. Então principiei dizendo muitos desaforos pra não chorar também, tinha dezenove anos... Diabo de família besta que via peru e chorava! coisas assim. Todos se esforçavam por sorrir, mas agora é que a alegria se tornara impossível. É que o pranto evocara por associação a imagem indesejável de meu pai morto. Meu pai, com sua figura cinzenta, vinha pra sempre estragar nosso Natal, fiquei danado.

Bom, principiou-se a comer em silêncio, lutuosos, e o peru estava perfeito. A carne mansa, de um tecido muito tênue boiava fagueira entre os sabores das farofas e do presunto, de vez em quando ferida, inquietada e redesejada, pela intervenção mais violenta da ameixa preta e o estorvo petulante dos pedacinhos de noz. Mas papai sentado ali, gigantesco, incompleto, uma censura, uma chaga, uma incapacidade. E o peru, estava tão gostoso, mamãe por fim sabendo que peru era manjar mesmo digno do Jesusinho nascido.

Principiou uma luta baixa entre o peru e o vulto de papai. Imaginei que gabar o peru era fortalecê-lo na luta, e, está claro, eu tomara decididamente o partido do peru. Mas os defuntos têm meios visguentos, muito hipócritas de vencer: nem bem gabei o peru que a imagem de papai cresceu vitoriosa, insuportavelmente obstruidora.

- Só falta seu pai...

Eu nem comia, nem podia mais gostar daquele peru perfeito, tanto que me interessava aquela luta entre os dois mortos. Cheguei a odiar papai. E nem sei que inspiração genial, de repente me tornou hipócrita e político. Naquele instante que hoje me parece decisivo da nossa família, tomei aparentemente o partido de meu pai. Fingi, triste:

- É mesmo... Mas papai, que queria tanto bem a gente, que morreu de tanto trabalhar pra nós, papai lá no céu há de estar contente... (hesitei, mas resolvi não mencionar mais o peru) contente de ver nós todos reunidos em família.

E todos principiaram muito calmos, falando de papai. A imagem dele foi diminuindo, diminuindo e virou uma estrelinha brilhante do céu. Agora todos comiam o peru com sensualidade, porque papai fora muito bom, sempre se sacrificara tanto por nós, fora um santo que "vocês, meus filhos, nunca poderão pagar o que devem a seu pai", um santo. Papai virara santo, uma contemplação agradável, uma inestorvável estrelinha do céu. Não prejudicava mais ninguém, puro objeto de contemplação suave. O único morto ali era o peru, dominador, completamente vitorioso.

Minha mãe, minha tia, nós, todos alagados de felicidade. Ia escrever "felicidade gustativa", mas não era só isso não. Era uma felicidade maiúscula, um amor de todos, um esquecimento de outros parentescos distraidores do grande amor familiar. E foi, sei que foi aquele primeiro peru comido no recesso da família, o início de um amor novo, reacomodado, mais completo, mais rico e inventivo, mais complacente e cuidadoso de si. Nasceu de então uma felicidade familiar pra nós que, não sou exclusivista, alguns a terão assim grande, porém mais intensa que a nossa me é impossível conceber.
Mamãe comeu tanto peru que um momento imaginei, aquilo podia lhe fazer mal. Mas logo pensei: ah, que faça! mesmo que ela morra, mas pelo menos que uma vez na vida coma peru de verdade!

A tamanha falta de egoísmo me transportara o nosso infinito amor... Depois vieram umas uvas leves e uns doces, que lá na minha terra levam o nome de "bem-casados". Mas nem mesmo este nome perigoso se associou à lembrança de meu pai, que o peru já convertera em dignidade, em coisa certa, em culto puro de contemplação.

Levantamos. Eram quase duas horas, todos alegres, bambeados por duas garrafas de cerveja. Todos iam deitar, dormir ou mexer na cama, pouco importa, porque é bom uma insônia feliz. O diabo é que a Rose, católica antes de ser Rose, prometera me esperar com uma champanha. Pra poder sair, menti, falei que ia a uma festa de amigo, beijei mamãe e pisquei pra ela, modo de contar onde é que ia e fazê-la sofrer seu bocado. As outras duas mulheres beijei sem piscar. E agora, Rose!...

A serra do rola-moça

A serra do rola-moça
Mário de Andrade

A Serra do Rola-Moça
Não tinha esse nome não...

Eles eram do outro lado,
Vieram na vila casar.
E atravessaram a serra,
O noivo com a noiva dele
Cada qual no seu cavalo.

Antes que chegasse a noite
Se lembraram de voltar.
Disseram adeus pra todos
E se puserem de novo
Pelos atalhos da serra
Cada qual no seu cavalo.

Os dois estavam felizes,
Na altura tudo era paz.
Pelos caminhos estreitos
Ele na frente, ela atrás.
E riam. Como eles riam!
Riam até sem razão.

A Serra do Rola-Moça
Não tinha esse nome não.

As tribos rubras da tarde
Rapidamente fugiam
E apressadas se escondiam
Lá embaixo nos socavões,
Temendo a noite que vinha.

Porém os dois continuavam
Cada qual no seu cavalo,
E riam. Como eles riam!
E os risos também casavam
Com as risadas dos cascalhos,
Que pulando levianinhos
Da vereda se soltavam,
Buscando o despenhadeiro.

Ali, Fortuna inviolável!
O casco pisara em falso.
Dão noiva e cavalo um salto
Precipitados no abismo.
Nem o baque se escutou.
Faz um silêncio de morte,
Na altura tudo era paz ...
Chicoteado o seu cavalo,
No vão do despenhadeiro
O noivo se despenhou.

E a Serra do Rola-Moça
Rola-Moça se chamou.

Descobrimento

Descobrimento
Mário de Andrade

Abancado à escrivaninha em São Paulo
Na minha casa da rua Lopes Chaves
De supetão senti um friúme por dentro.
Fiquei trêmulo, muito comovido
Com o livro palerma olhando pra mim.

Não vê que me lembrei que lá no Norte, meu Deus!
muito longe de mim
Na escuridão ativa da noite que caiu
Um homem pálido magro de cabelo escorrendo nos olhos,
Depois de fazer uma pele com a borracha do dia,
Faz pouco se deitou, está dormindo.

Esse homem é brasileiro que nem eu.

Garoa do Meu São Paulo

Garoa do Meu São Paulo
Mário de Andrade

Garoa do meu São Paulo,
-Timbre triste de martírios-
Um negro vem vindo, é branco!
Só bem perto fica negro,
Passa e torna a ficar branco.

Meu São Paulo da garoa,
-Londres das neblinas finas-
Um pobre vem vindo, é rico!
Só bem perto fica pobre,
Passa e torna a ficar rico.

Garoa do meu São Paulo,
-Costureira de malditos-
Vem um rico, vem um branco,
São sempre brancos e ricos...

Garoa, sai dos meus olhos.

Lundu do escritor difícil

Lundu do escritor difícil
Mário de Andrade

Eu sou um escritor difícil
Que a muita gente enquizila,
Porém essa culpa é fácil
De se acabar duma vez:
É só tirar a cortina
Que entra luz nesta escurez.

Cortina de brim caipora,
Com teia caranguejeira
E enfeite ruim de caipira,
Fale fala brasileira
Que você enxerga bonito
Tanta luz nesta capoeira
Tal-e-qual numa gupiara.

Misturo tudo num saco,
Mas gaúcho maranhense
Que pára no Mato Grosso,
Bate este angu de caroço
Ver sopa de caruru;
A vida é mesmo um buraco,
Bobo é quem não é tatu!

Eu sou um escritor difícil,
Porém culpa de quem é!...
Todo difícil é fácil,
Abasta a gente saber.
Bajé, pixé, chué, ôh "xavié"
De tão fácil virou fóssil,
O difícil é aprender!

Virtude de urubutinga
De enxergar tudo de longe!
Não carece vestir tanga
Pra penetrar meu caçanje!
Você sabe o francês "singe"
Mas não sabe o que é guariba?
- Pois é macaco, seu mano,
Que só sabe o que é da estranja.

O Domador

O Domador
Mário de Andrade

Alturas da Avenida. Bonde 3.
Asfaltos. Vastos, altos repuxos de poeira
sob o arlequinal do céu oiro-rosa-verde...
As sujidades implexas do urbanismo.
Filés de manuelino. Calvícies de Pensilvânia.
Gritos de goticismo.

Na frente o tram da irrigação,
onde um Sol bruxo se dispersa
num triunfo persa de esmeraldas, topázios e rubis...
Lânguidos boticellis a ler Henry Bordeaux
nas clausuras sem dragões dos torreões...

Mário, paga os duzentos réis.
São cinco no banco: um branco,
um noite, um oiro,
um cinzento de tísica e Mário...
Solicitudes! Solicitudes!

Mas... olhai, oh meus olhos saudosos dos ontens
esse espetáculo encantado da Avenida!
Revivei, oh gaúchos paulistas ancestremente!
e oh cavalos de cólera sangüínea!

Laranja da China, laranja da China, laranja da China!
Abacate, cambucá e tangerina!
Guarda-te! Aos aplausos do esfuziante clown,
heróico sucessor da raça heril dos bandeirantes,
loiramente domando um automóvel!

Os Cortejos

Os Cortejos
Mário de Andrade

Monotonias das minhas retinas...
Serpentinas de entes frementes a se desenrolar...
Todos os sempres das minhas visões! "Bon Giorno, caro."

Horríveis as cidades!
Vaidades e mais vaidades...
Nada de asas! Nada de poesia! Nada de alegria!
Oh! os tumultuários das ausências!
Paulicéia - a grande boca de mil dentes;
e os jorros dentre a língua trissulca
de pus e de mais pus de distinção...
Giram homens fracos, baixos, magros...
Serpentinas de entes frementes a se desenrolar...

Estes homens de São Paulo,
toso iguais e desiguais,
quando vivem dentro dos meus olhos tão ricos,
parecem-me uns macacos, uns macacos.

Paisagem N. 3

Paisagem N.° 3
Mário de Andrade

Chove?
Sorri uma garoa de cinza,
Muito triste, como um tristemente longo...
A Casa Kosmos não tem impermeáveis em liquidação...
Mas neste Largo do Arouche
Posso abrir o meu guarda-chuva paradoxal,
Este lírico plátano de rendas mar...

Ali em frente... - Mário, põe a máscara!
-Tens razão, minha Loucura, tens razão.
O rei de Tule jogou a taça ao mar...

Os homens passam encharcados...
Os reflexos dos vultos curtos
Mancham o petit-pavé...
As rolas da Normal
Esvoaçam entre os dedos da garoa...
(E si pusesse um verso de Crisfal
No De Profundis?...)
De repente
Um raio de Sol arisco
Risca o chuvisco ao meio.

Quando eu morrer quero ficar

Quando eu morrer quero ficar
Mário de Andrade

Quando eu morrer quero ficar,
Não contem aos meus inimigos,
Sepultado em minha cidade,
Saudade.

Meus pés enterrem na rua Aurora,
No Paissandu deixem meu sexo,
Na Lopes Chaves a cabeça
Esqueçam.

No Pátio do Colégio afundem
O meu coração paulistano:
Um coração vivo e um defunto
Bem juntos.

Escondam no Correio o ouvido
Direito, o esquerdo nos Telégrafos,
Quero saber da vida alheia,
Sereia.

O nariz guardem nos rosais,
A língua no alto do Ipiranga
Para cantar a liberdade.
Saudade...

Os olhos lá no Jaraguá
Assistirão ao que há de vir,
O joelho na Universidade,
Saudade...

As mãos atirem por aí,
Que desvivam como viveram,
As tripas atirem pro Diabo,
Que o espírito será de Deus.
Adeus.

Tristura

Tristura
Mário de Andrade

"Une rose dans les ténèbres"
Mallaemé

Profundo. Imundo meu coração...
Olha o edifício: Matadouros da Continental.
Os vícios viciaram-me na bajulação sem sacrifícios...
Minha alma corcunda como a avenida São João...

E dizem que os polichinelos são alegres!
Eu nunca em guizos nos meus interiores arlequinais!...

Paulicéias, minha noiva... Há matrimônios assim...
Ninguém os assistirá nos jamais!
As permanências de ser um na febre!
Nunca nos encontramos...
Mas há rendez-vous na meia-noite do Armenonville...

E tivemos uma filha, uma só...
Batismos do sr. cura Bruma;

água-benta das garoas monótonas...
Registrei-a no cartório da Consolação...
Chamei-a Solitude das Plebes...

Pobres cabelos cortados da nossa monja!

Poemas da amiga

Poemas da amiga
Mário de Andrade

A tarde se deitava nos meus olhos
E a fuga da hora me entregava abril,
Um sabor familiar de até-logo criava
Um ar, e, não sei porque, te percebi.

Voltei-me em flor. Mas era apenas tua lembrança.
Estavas longe doce amiga e só vi no perfil da cidade
O arcanjo forte do arranha-céu cor de rosa,
Mexendo asas azuis dentro da tarde.

Quando eu morrer quero ficar,
Não contem aos meus amigos,
Sepultado em minha cidade,
Saudade.

Meus pés enterrem na rua Aurora,
No Paissandu deixem meu sexo,
Na Lopes Chaves a cabeça
Esqueçam.

No Pátio do Colégio afundem
O meu coração paulistano:
Um coração vivo e um defunto
Bem juntos.

Escondam no Correio o ouvido
Direito, o esquerdo nos Telégrafos,
Quero saber da vida alheia
Sereia.

O nariz guardem nos rosais,
A língua no alto do Ipiranga
Para cantar a liberdade.
Saudade...

Os olhos lá no Jaraguá
Assistirão ao que há de vir,
O joelho na Universidade,
Saudade...

As mãos atirem por aí,
Que desvivam como viveram,
As tripas atirem pro Diabo,
Que o espírito será de Deus.
Adeus.

Paisagem N. 1

Paisagem N.º 1
Mário de Andrade

Minha Londres das neblinas finas!
Pleno verão. Os dez mil milhões de rosas paulistanas.
Há neve de perfumes no ar.
Faz frio, muito frio...
E a ironia das pernas das costureirinhas
parecidas com bailarinas...
O vento é como uma navalha
nas mãos dum espanhol. Arlequinal!...
Há duas horas queimou Sol.
Daqui a duas horas queima Sol.

Passa um São Bobo, cantando, sob os plátanos,
um tralálá... A guarda-cívica! Prisão!
Necessidade a prisão
para que haja civilização?
Meu coração sente-se muito triste...
Enquanto o cinzento das ruas arrepiadas
dialoga um lamento com o vento...

Meu coração sente-se muito alegre!
Este friozinho arrebitado
dá uma vontade de sorrir!

E sigo. E vou sentindo,
à inquieta alacridade da invernia,
como um gosto de lágrimas na boca...

Ode ao burgues

Ode ao burguês
Mário de Andrade

Eu insulto o burguês! O burguês-níquel
o burguês-burguês!
A digestão bem-feita de São Paulo!
O homem-curva! O homem-nádegas!
O homem que sendo francês, brasileiro, italiano,
é sempre um cauteloso pouco-a-pouco!

Eu insulto as aristocracias cautelosas!
Os barões lampiões! Os condes Joões! Os duques zurros!
Que vivem dentro de muros sem pulos,
e gemem sangue de alguns mil-réis fracos
para dizerem que as filhas da senhora falam o francês
e tocam os "Printemps" com as unhas!

Eu insulto o burguês-funesto!
O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições!
Fora os que algarismam os amanhãs!
Olha a vida dos nossos setembros!
Fará Sol? Choverá? Arlequinal!
Mas à chuva dos rosais
o êxtase fará sempre Sol!

Morte à gordura!
Morte às adiposidades cerebrais!
Morte ao burguês-mensal!
Ao burguês-cinema! Ao burguês-tiburi!
Padaria Suíssa! Morte viva ao Adriano!
"- Ai, filha, que te darei pelos teus anos?
- Um colar... - Conto e quinhentos!!!
Más nós morremos de fome!"

Come! Come-te a ti mesmo, oh! gelatina pasma!
Oh! purée de batatas morais!
Oh! cabelos nas ventas! Oh! carecas!
Ódio aos temperamentos regulares!
Ódio aos relógios musculares! Morte à infâmia!
Ódio à soma! Ódio aos secos e molhados
Ódio aos sem desfalecimentos nem arrependimentos,
sempiternamente as mesmices convencionais!
De mãos nas costas! Marco eu o compasso! Eia!
Dois a dois! Primeira posição! Marcha!
Todos para a Central do meu rancor inebriante!

Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio!
Morte ao burguês de giolhos,
cheirando religião e que não crê em Deus!
Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico!
Ódio fundamento, sem perdão!

Fora! Fu! Fora o bom burguês!...

Moça linda bem tratada

Moça linda bem tratada
Mário de Andrade

Moça linda bem tratada,
Três séculos de família,
Burra como uma porta:
Um amor.

Grã-fino do despudor,
Esporte, ignorância e sexo,
Burro como uma porta:
Um coió.

Mulher gordaça, filó,
De ouro por todos os poros
Burra como uma porta:
Paciência...

Plutocrata sem consciência,
Nada porta, terremoto
Que a porta de pobre arromba:
Uma bomba.

Inspiracao

Inspiração
Mário de Andrade

-Onde até na força do verão havia
tempestades de ventos e frios de
crudelíssimo inverno.-

Fr. Luís de Sousa

São Paulo! Comoção de minha vida...
Os meus amores são flores feitas de original...
Arlequinal!... Traje de losangos... Cinza e ouro...
Luz e bruma... Forno e inverno morno...
Elegâncias sutis sem escândalos, sem ciúmes...
Perfumes de Paris... Arys!
Bofetadas líricas no Trianon... Algodoal!...

São Paulo! Comoção de minha vida...
Galicismo a berrar nos desertos da América!

Eu Sou Trezentos...

Eu Sou Trezentos...
Mário de Andrade

Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,
As sensações renascem de si mesmas sem repouso,
Ôh espelhos, ôh! Pirineus! ôh caiçaras!
Si um deus morrer, irei no Piauí buscar outro!

Abraço no meu leito as milhores palavras,
E os suspiros que dou são violinos alheios;
Eu piso a terra como quem descobre a furto
Nas esquinas, nos táxis, nas camarinhas seus próprios beijos!

Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,
Mas um dia afinal eu toparei comigo...
Tenhamos paciência, andorinhas curtas,
Só o esquecimento é que condensa,
E então minha alma servirá de abrigo.

Aceitaras o amor como eu o encaro?...

Aceitarás o amor como eu o encaro?...
Mário de Andrade

Aceitarás o amor como eu o encaro ?...
...Azul bem leve, um nimbo, suavemente
Guarda-te a imagem, como um anteparo
Contra estes móveis de banal presente.

Tudo o que há de melhor e de mais raro
Vive em teu corpo nu de adolescente,
A perna assim jogada e o braço, o claro
Olhar preso no meu, perdidamente.

Não exijas mais nada. Não desejo
Também mais nada, só te olhar, enquanto
A realidade é simples, e isto apenas.

Que grandeza... a evasão total do pejo
Que nasce das imperfeições. O encanto
Que nasce das adorações serenas.

Macunaíma, I Macunaíma

Macunaíma
Mário de Andrade

No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente. Era preto retinto e filho do medo da noite. Houve um momento em que o silêncio foi tão grande escutando o murmurejo do Uraricoera, que a índia, tapanhumas pariu uma criança feia. Essa criança é que chamaram de Macunaíma.

Já na meninice fez coisas de sarapantar. De primeiro: passou mais de seis anos não falando. Sio incitavam a falar exclamava: If - Ai! que preguiça!. . . e não dizia mais nada."] Ficava no canto da maloca, trepado no jirau de paxiúba, espiando o trabalho dos outros e principalmente os dois manos que tinha, Maanape já velhinho e Jiguê na força de homem. O divertimento dele era decepar cabeça de saúva. Vivia deitado mas si punha os olhos em dinheiro, Macunaíma dandava pra ganhar vintém. E também espertava quando a família ia tomar banho no rio, todos juntos e nus. Passava o tempo do banho dando mergulho, e as mulheres soltavam gritos gozados por causa dos guaimuns diz-que habitando a água-doce por lá. No mucambo si alguma cunhatã se aproximava dele pra fazer festinha, Macunaíma punha a mão nas graças dela, cunhatã se afastava. Nos machos guspia na cara. Porém respeitava os velhos, e freqüentava com aplicação a murua a poracê o torê o bacorocô a cucuicogue, todas essas danças religiosas da tribo.

Quando era pra dormir trepava no macuru pequeninho sempre se esquecendo de mijar. Como a rede da mãe estava por debaixo do berço, o herói mijava quente na velha, espantando os mosquitos bem. Então adormecia sonhando palavras-feias, imoralidades estrambólicas e dava patadas no ar.

Nas conversas das mulheres no pino do dia o assunto eram sempre as peraltagens do herói. As mulheres se riam muito simpatizadas, falando que "espinho que pinica, de pequeno já traz ponta", e numa pagelança Rei Nagô fez um discurso e avisou que o herói era inteligente.

Nem bem teve seis anos deram água num chocalho pra ele e Macunaíma principiou falando como todos. E pediu pra mãe que largasse da mandioca ralando na cevadeira e levasse ele passear no mato. A mãe não quis porque não podia largar da mandioca não. Macunaíma choramingou dia inteiro. De noite continuou chorando. No outro dia esperou com o olho esquerdo dormindo que a mãe principiasse o trabalho. Então pediu pra ela que largasse de tecer o paneiro de guarumá-membeca e levasse ele no mato passear. A mãe não quis porque não podia largar o paneiro não. E pediu pra nora, companheira de Jiguê que levasse o menino. A companheira de Jiguê era bem moça e chamava Sofará. Foi se aproximando ressabiada porém desta vez Macunaíma ficou muito quieto sem botar a mão na graça de ninguém. A moça carregou o piá nas costas e foi até o pé de aninga na beira do rio. A água parará pra inventar um ponteio de gozo nas folhas do javari. O longe estava bonito com muitos biguás e biguatingas avoando na estrada do furo. A moça botou Macunaíma na praia porém ele principiou choramingando, que tinha muita formiga!... e pediu pra Sofará que o levasse até o derrame do morro lá dentro do mato, a moça fez. Mas assim que deitou o curumim nas tiriricas, tajás e trapoerabas da serrapilheira, ele botou corpo num átimo e ficou um príncipe lindo. Andaram por lá muito.

Quando voltaram pra maloca a moça parecia muito fatigada de tanto carregar piá nas costas. Era que o herói tinha brincado muito com ela. Nem bem ela deitou Macunaíma na rede, Jiguê já chegava de pescar de puçá e a companheira não trabalhara nada. Jiguê enquizlou e depois de catar os carrapatos deu nela muito. Sofará agüentou a sova sem falar um isto.

Jiguê não desconfiou de nada e começou trançando corda com fibra de curauá. Não vê que encontrara rasto fresco de anta e queria pegar o bicho na armadilha. Macunaíma pediu um pedaço de curauá pro mano porém Jiguê falou que aquilo não era brinquedo de criança. Macunaíma principiou chorando outra vez e a noite ficou bem difícil de passar pra todos.

No outro dia Jiguê levantou cedo pra fazer arma-ilha e enxergando o menino tristinho falou:

- Bom-dia, coraçãozinho dos outros.

Porém Macunaíma fechou-se em copas carrancudo.

- Não quer falar comigo, é? - Estou de mal.

- Por causa?

Então Macunaíma pediu fibra de curauá. Jiguê olhou pra ele com ódio e mandou a companheira arranjar fio pro menino, a moça fez. Macunaíma agradeceu e foi pedir pro pai-de-terreiro que trançasse uma corda para ele e assoprasse bem nela fumaça de petum.

Quando tudo estava pronto Macunaíma pediu pra mãe que deixasse o cachiri fermentando e levasse ele no mato passear. A velha não podia por causa do trabalho mas a companheira de Jiguê mui sonsa falou pra sogra que "estava às ordens". E foi no mato com o piá nas costas.

Quando o botou nos carurus e sororocas da serrapilheira, o pequeno foi crescendo foi crescendo e virou príncipe lindo. Falou pra Sofará esperar um bocadinho que já voltava pra brincarem e foi no bebedouro da anta armar um laço. Nem bem voltaram do passeio, tardinha, Jiguê já chegava também de prender a armadilha no rasto da anta. A companheira não trabalhara nada. Jiguê ficou fulo e antes de catar os carrapatos bateu nela muito. Mas Sofará agüentou a coca com paciência.

No outro dia a arraiada inda estava acabando de trepar nas árvores, Macunaíma acordou todos, fazendo um bué medonho, que fossem! que fossem no bebedouro buscar a bicha que ele caçara!... Porém ninguém não acreditou e todos principiaram o trabalho do dia.

Macunaíma ficou muito contrariado e pediu pra Sofará que desse uma chegadinha no bebedouro só pra ver. A moça fez e voltou falando pra todos que de fato estava no laço uma anta muito grande já morta. Toda a tribo foi buscar a bicha, matutando na inteligência do curumim. Quando Jiguê chegou com a corda de curauá vazia, encontrou todos tratando da caça, ajudou. E quando foi pra repartir não deu nem um pedaço de carne pra Macunaíma, só tripas. O herói jurou vingança.

No outro dia pediu pra Sofará que levasse ele passear e ficaram no mato até a bôca-da-noite. Nem bem o menino tocou no folhiço e virou num príncipe fogoso. Brincaram. Depois de brincarem três feitas,

correram mato fora fazendo festinhas um pro outro. Depois das festinhas de cotucar, fizeram a das cócegas, depois se enterraram na areia, depois se queimaram com fogo de palha, isso foram muitas festinhas. Macunaíma pegou num tronco de copaíba e se escondeu por detrás, da piranheira. Quando Sofará veio correndo, ele deu com o pau na cabeça dela. Fez uma brecha que a moça caiu torcendo de riso aos pés dele. Puxou-o por uma perna. Macunaíma gemia de gosto se agarrando no tronco gigante. Então a moça abocanhou o dedão do pé dele e engoliu. Macunaíma chorando de alegria tatuou o corpo dela com o sangue do pé. Depois retesou os músculos, se erguendo num trapézio de cipó e aos pulos atingiu num átimo o galho mais alto da piranheira. Sofará trepava atrás. O ramo fininho vergou oscilando com o peso do príncipe. Quando a moça chegou também no tope eles brincaram outra vez balanceando no céu. Depois de brincarem Macunaíma quis fazer uma festa em Sofará. Dobrou o corpo todo na violência dum puxão mas não pôde continuar, galho quebrou e ambos despencaram aos emboléus até se esborracharem no chão. Quando o herói voltou da sapituca procurou a moça em redor, não estava. Ia se erguendo pra buscá-la porém do galho baixo em riba dele furou o silêncio o miado temível da suçuarana. O herói se estatelou de medo e fechou os olhos pra ser comido sem ver. Então se escutou um risinho e Macunaíma tomou com uma gusparada no peito, era a moça. Macunaíma principiou atirando pedras nela e quando feria, Sofará gritava de excitação tatuando o corpo dele em baixo com o sangue espirrado. Afinal uma pedra lascou o canto da boca da moça e moeu três dentes. Ela pulou do galho e juque! tombou sentada na barriga do herói que a envolveu com o corpo todo, uivando de prazer. E brincaram mais outra vez.

Já a estrela Papacéia brilhava no céu quando a moça voltou parecendo muito fatigada de tanto carregar piá nas costas. Porém Jiguê desconfiado seguira os dois no mato, enxergara a transformação e o resto. Jiguê era muito bobo. Teve raiva. Pegou num rabo-de-tatu e chegou-o com vontade na bunda do herói. O berreiro foi tão imenso que encurtou o tamanhão da noite e muitos pássaros caíram de susto no chão e se transformaram em pedra.

Quando Jiguê não pôde mais surrar, Macunaíma correu até a capoeira, mastigou raiz de cardeiro e voltou são. Jiguê levou Sofará pro pai dela e dormiu folgado na rede.

Macunaíma, II MAIORIDADE

Jiguê era muito bobo e no outro dia apareceu puxando pela mão uma cunha. Era a companheira nova dele e chamava Iriqui. Ela trazia sempre um ratão vivo escondido na maçaroca dos cabelos e faceirava muito. Pintava a cara com araraúba e jenipapo e todas as manhãs passava coquinho de assai nos beiços que ficavam totalmente roxos. Depois esfregava limão-de-caiena por cima e os beiços viravam totalmente encarnados. Então Iriqui se envolvia num manto de algodão listrado com preto de acariúba e verde de tatajuba e aromava os cabelos com essência de umiri, era linda.

Ora depois de todos comerem a anta de Macunaíma a fome bateu no mocambo. Caça, ninguém não pegava caça mais, nem algum tatu-galinha aparecia! e por causa de Maanape ter matado um boto pra comerem, o sapo cunauru chamado Maraguigana pai do boto fitou enfezado. Mandou a enchente e o milharal apodreceu. Comeram tudo, até a crueira dura se acabou e o fogaréu de noite e dia não moqueava nada não, era só pra remediar a friagem que caiu. Não havia pra gente assar nele nem uma isca de jobá.

Então Macunaíma quis se divertir um pouco. Falou prós manos que inda tinha muita piaba muito jeju muito matrinchão e jatuaranas, todos esses peixes do rio, fossem bater timbó! Maanape disse:

- Não se encontra mais timbó. Macunaíma disfarçando secundou: - Junto daquela grota onde tem dinheiro enterrado enxerguei um despotismo de timbó.

- Então venha com a gente pra mostrar onde que é.

Foram. A margem estava traiçoeira e nem se achava bem o que era terra o que era rio entre as mamoranas copadas. Maanape e Jiguê procuravam procuravam enlameados até os dentes, degringolando juque! nos barreiros ocultos pela inundação. E pulavam se livrando dos buracos, aos berros, com as mãos pra trás por causa dos candirus safadinhos querendo entrar por eles. Macunaíma ria por dentro vendo as micagens dos manos campeando timbó. Fingia campear também mas não dava passo não, bem enxutinho no firme. Quando os manos passavam perto dele, se agachava e gemia de fadiga.

- Deixe de trabucar assim, piá!

Então Macunaíma sentou numa barranca do rio e batendo com os pés n'água espantou os mosquitos. E eram muitos mosquitos, piuns maruins arurus tatuquiras muriçocas meruanhas mariguis borrachudos varejas, toda essa mosquitada.

Quando foi de tardezinha os manos vieram buscar Macunaíma tiriricas por não terem topado com nenhum pé de timbó. O herói teve medo e disfarçou:

- Acharam? - Que achamos nada! - Pois foi aqui mesmo que enxerguei timbó. Timbó já foi gente um dia que nem nós... Presenciou que andavam campeando ele e sorveteu. Timbó foi gente um dia que nem nós...

Os manos se admiraram da inteligência do menino e voltaram os três pra maloca.

Macunaíma estava muito contrariado por causa da fome. No outro dia falou pra velha:

- Mãe, quem que leva nossa casa pra outra banda do rio lá no teso, quem que leva? Fecha os olhos um bocadinho, velha, e pergunta assim.

A velha fez. Macunaíma pediu pra ela ficar mais tempo com os olhos fechados e carregou tejupar marombas flechas piquás sapiquás corotes urupemas redes, todos esses trens pra um aberto do mato lá no teso do outro lado do rio. Quando a velha abriu os olhos estava tudo lá e tinha caça peixes, bananeiras dando, tinha comida por demais. Então foi cortar banana.

- Inda que mal lhe pergunte, mãe, porque a senhora arranca tanta pacova assim! - Levar pra vosso mano Jiguê com a linda Iriqui e pra vosso mano Maanape que estão padecendo fome.

Macunaíma ficou muito contrariado. Maginou maginou e disse pra velha:

- Mãe, quem que leva nossa casa pra outra banda do rio no banhado, quem que leva? Pergunta assim! A velha fez. Macunaíma pediu pra ela ficar com os olhos fechados e levou todos os carregos, tudo, pro lugar em que estavam de já-hoje

no mondongo imundado. Quando a velha abriu os olhos tudo estava no lugar de dantes, vizinhando com os tejupares de mano Maanape e de mano Jiguê com a linda Iriqui. E todos ficaram roncando de fome outra vez.

Então a velha teve uma raiva malvada. Carregou o herói na cintura e partiu. Atravessou o mato e chegou no capoeirão chamado Cafundó do Judas. Andou légua e meia nele, nem se enxergava mato mais, era um coberto plano apenas movimentado com o pulinho dos cajueiros. Nem guaxe animava a solidão. A velha botou o curumim no campo onde ele podia crescer mais não e falou:

- Agora vossa mãe vai embora. Tu ficas perdido no coberto e podes crescer mais não.

E desapareceu. Macunaíma assuntou o deserto e sentiu que ia chorar. Mas não tinha ninguém por ali, não chorou não. Criou coragem e botou pé na estrada, tremelicando com as perninhas de arco. Vagamundou de déu em déu semana, até que topou com o Currupira inoqueando carne, acompanhado do cachorro dele Papamel. E o Currupira vive no grelo do tucunzeiro e pede fumo pra gente. Macunaíma falou:

- Meu avô, dá caça pra mim comer? - Sim, Currupira fez.

Cortou carne da perna moqueou e deu pro menino, perguntando:

- O que você está fazendo na capoeira, rapaiz! - Passeando.

- Não diga! - Pois é, passeando...

Então contou o castigo da mãe por causa dele ter sido malévolo prós manos. E contando o transporte da casa de novo pra deixa onde não tinha caça deu uma grande gargalhada. O Currupira olhou pra ele e resmungou:

- Tu não é mais curumi, rapaiz, tu não é mais curumi não ... Gente grande que faiz isso...

Macunaíma agradeceu e pediu pro Currupira ensinar o caminho pro mocambo dos Tapanhumas. O Currupira estava querendo mas era comer o herói, ensinou falso:

- Tu vai por aqui, menino-home, vai por aqui, passa pela frente daquele pau, quebra a mão esquerda, vira e volta por debaixo dos meus uaiariquinizês.

Macunaíma foi fazer a volta porém chegado na frente do pau, cocou a perninha e murmurou: - Ai! que preguiça!... e seguiu direito.

O Currupira esperou bastante porém curumim não chegava... Pois então o monstro amontou no viado, que é o cavalo dele, fincou o pé redondo na virilha do corredor e lá se foi gritando: - Carne de minha perna! carne de minha perna! Lá de dentro da barriga do herói a carne respondeu: - Que foi? Macunaíma apertou o passo e entrou correndo na caatinga porém o Currupira corria mais que ele e o menino isso vinha que vinha acochado pelo outro.

- Carne de minha perna! carne de minha perna! A carne secundava: - Que foi? O piá estava desesperado. Era dia do casamento da raposa e a velha Vei, a Sol, relampeava nas gotinhas de chuva debulhando luz feito milho. Macunaíma chegou perto duma poça, bebeu água de lama e vomitou a carne.

- Carne de minha perna! carne de minha perna! que o Currupira vinha gritando.

- Que foi? secundou a carne já na poça. Macunaíma ganhou os bredos por outro lado e escapou.

Légua e meia adiante por detrás dum formigueiro escutou uma voz cantando assim: "Acuti pita canhém..." lentamente.

Foi lá e topou com a cotia farinhando mandioca num tipiti de j achara.

- Minha vó, dá aipim pra mim comer? - Sim, cotia fez. Deu aipim pro menino, perguntando: - Quê que você está fazendo na caatinga, meu neto? - Passeando.

- Ah o quê!

- Passeando, então!

Contou como enganara o Currupira e deu uma grande gargalhada. A cotia olhou pra ele e resmungou:

- Culumi faz isso não, meu neto, culumi faz isso não. .. Vou te igualar o corpo com o bestunto.

Então pegou na gamela cheia de caldo envenenado de aipim e jogou a lavagem no piá. Macunaíma fastou sarapantado mas só conseguiu livrar a cabeça, todo o resto do corpo se molhou. O herói deu um espirro e botou corpo. Foi desempenando crescendo fortificando e ficou do tamanho dum home taludo. Porém a cabeça não molhada ficou pra sempre rombuda e com carinha enjoativa de piá.

Macunaíma agradeceu o feito e frechou cantando pro mocambo nativo. A noite vinha bezourenta enfiando as formigas na terra e tirando os mosquitos d'água. Fazia um calor de ninho no ar. A velha tapanhumas escutou a voz do filho no longe cinzado e se espantou: Macunaíma apareceu de cara amarrada e falou pra ela:

- Mãe, sonhei que caiu meu dente.

- Isso é morte de parente, comentou a velha.

- Bem que sei. A senhora vive mais uma Sol só. Isso mesmo porque me pariu.

No outro dia os manos foram pescar e caçar, a velha foi no roçado e Macunaíma ficou só com a companheira de Jiguê. Então ele virou na formiga quenquém e mordeu Iriqui pra fazer festa nela. Mas a moça atirou a quenquém longe. Então Macunaíma virou num pé de urucum. A linda Iriqui riu, colheu as sementes se faceirou toda pintando a cara e os distintivos, Ficou lindíssima. Então Macunaíma, de gostoso, virou gente outra feita e morou com a companheira de Jiguê.

Quando os manos voltaram da caça Jiguê percebeu a troca logo, porém Maanape falou pra ele que agora Macunaíma estava homem pra sempre e troncudo. Maanape era feiticeiro. Jiguê viu que a maloca estava cheia de alimentos, tinha pacova tinha milho tinha macaxeira, tinha alua e cachiri, tinha maparás e camorins pescados, maracujá-michira ata abio sapota sapotilha, tinha passoca de viado e carne fresca de cutiara, todos esses comes e bebes bons... Jiguê conferiu que não pagava a pena brigar com o mano e deixou a linda Iriqui pra ele. Deu um suspiro catou os carrapatos e dormiu folgado na rede.

No outro dia Macunaíma depois de brincar cedinho com a linda Iriqui, saiu pra dar uma voltinha. Atravessou o reino encantado da Pedra Bonita em Pernambuco e quando estava chegando na cidade de Santarém topou com uma viada parida.

- Essa eu caço! ele fez. E perseguiu a viada. Esta escapuliu fácil mas o herói pôde pegar o filhinho dela que nem não andava quase, se escondeu por detrás duma carapanaúba e cotucando o viadinho fez ele berrar. A viada ficou feito louca, esbugalhou os olhos parou turtuveou e veio vindo veio vindo parou ali mesmo defronte chorando de amor. Então o herói flechou a viada parida. Ela caiu esperneou um bocado e ficou rija estirada no chão. O herói cantou vitória. Chegou perto da viada olhou que mais olhou e deu um grito, desmaiando. Tinha sido uma peça do Anhanga... Não era viada não, era a própria mãe tapanhumas que Macunaíma flechara e estava morta ali, toda arranhada com os espinhos das titaras e mandacarus dó mato.

Quando o herói voltou da sapituca foi chamar os manos e os três chorando muito passaram a noite de guarda bebendo oloniti e comendo carimã com peixe. Madrugadinha pousaram o corpo da velha numa rede e foram enterrá-la por debaixo duma pedra no lugar chamado Pai da Tocandeira. Maanape que era um catimbozeiro de marca maior, foi que gravou o epitáfio. E era assim:

Jejuaram o tempo que o preceito mandava e Macunaíma gastou o jejum se lamentando heroicamente. A barriga da morta foi inchando foi inchando e no fim das chuvas tinha virado num cerro macio. Então Macunaíma deu a mão pra Iriqui, Iriqui deu a mão pra Maanape, Maanape deu a mão pra Jiguê e os quatro partiram por esse mundo.

Macunaíma, III Ci, MÃE DO MATO

Uma feita os quatro iam seguindo por um caminho no mato e estavam penando muito de sede, longe dos igapós e das lagoas. Não tinha nem mesmo umbu no bairro e Vei, a Sol, esfiapando por entre a folhagem guascava sem parada o lombo dos andarengos. Suavam como numa pagelança em que todos tivessem besuntado o corpo com azeite de piquiá, marchavam. De repente Macunaíma parou riscando a noite do silêncio com um gesto imenso de alerta. Os outros estacaram. Não se escutava nada porém Macunaíma sussurrou: - Tem coisa.

Deixaram a linda Iriqui se enfeitando sentada nas raízes duma samaúma e avançaram cautelosos. Já Vei estava farta de tanto guascar o lombo dos três manos quando légua e meia adiante Macunaíma escoteiro topou com uma cunha dormindo. Era Ci, Mãe do Mala Logo viu pelo peito destro seco dela, que a moça fazia parte dessa tribo de mulheres sozinhas parando lá nas praias da lagoa Espelho da Lua, coada pela Nhamundá. A cunha era linda com o corpo chupado pelos vícios, colorido com genipapo.

O herói se atirou por cima dela pra brincar. Ci não queria. Fez lança de flecha tridente enquanto Macunaíma puxava da pageú. Foi um pega tremendo e por debaixo da copada reboavam os berros dos briguentos diminuindo de medo os corpos dos passarinhos. O herói apanhava. Recebera já um murro de fazer sangue no nariz e um lapo fundo de txara no rabo. A icamiaba não tinha nem um arranhãozinho e cada gesto que fazia era mais sangue no corpo do herói soltando berros formidandos que diminuíam de medo os corpos dos passarinhos. Afinal se vendo nas amarelas porque não podia mesmo com a icamiaba, o herói deitou fugindo chamando pelos manos: - Me acudam que sinão eu mato! me acudam que sinão eu mato! Os manos vieram e agarraram Ci. Maanape trançou os braços dela por detrás enquanto Jiguê com a murucu lhe dava uma porrada no coco. E a icamiaba caiu sem auxílio nas samambaias da serrapilheira. Quando ficou bem imóvel, Macunaíma se aproximou e brincou com a Mãe do Mato. Vieram então muitas jandaias, muitas araras vermelhas

tuins coricas periquitos, muitos papagaios saudar Macunaíma, o novo Imperador do Mato-Virgem.

E os três manos seguiram com a companheira nova. Atravessaram a cidade das Flores evitaram o rio das Amarguras passando por debaixo do salto da Felicidade, tomaram a estrada dos Prazeres e chegaram no capão de Meu Bem que fica nos cerros da Venezuela. Foi de lá que Macunaíma imperou sobre os matos misteriosos, enquanto Ci comandava nos assaltos as mulheres empunhando txaras de três pontas.

O herói vivia sossegado. Passava os dias marupiara na rede matando formigas taiocas, chupitando golinhos estalados de pajuari e quando agarrava cantando companhado pelos sons gotejantes do cotcho, os matos reboavam com doçura adormecendo as cobras os carrapatos os mosquitos as formigas e os deuses ruins.

De noite Ci chegava recendendo resina de pau, sangrando das brigas e trepava na rede que ela mesmo tecera com fios de cabelo. Os dois brincavam e depois ficavam rindo um pro outro.

Ficavam rindo longo tempo, bem juntos. Ci aromava tanto que Macunaíma tinha tonteiras de moleza.

- Puxa como você cheira, benzinho! que ele murmurava gozado. E escancarava as narinas mais. Vinha uma tonteira tão macota que o sono principiava pingando das pálpebras dele. Porém a Mãe do Mato inda não estava satisfeita não e com um jeito de rede que enlaçava os dois convidava o companheiro para mais brinquedo. Morto de soneira, infernizado, Macunaíma brincava para não desmentir a fama só porém quando Ci queria rir com ele de satisfação: - Ai! que preguiça!...

que o herói suspirava enfarado. E dando as costas para ela adormecia bem. Mas Ci queria brincar inda mais... Convidava convidava... O herói ferrado no sono. Então a Mãe do Mato pegava na txara e cotucava o companheiro. Macunaíma se acordava dando grandes gargalhadas estorcegando de cócegas.

- Faz isso não, oferecida! - Faço! - Deixa a gente dormir, meu bem...

- Vamos brincar.

- Ai! que preguiça!...

E brincavam mais outra vez Porém nos dias de muito pajuari bebido, Ci encontra o Imperador do Mato-Virgem largado por aí num porre mãe. Iam brincar e o herói esquecia no meio.

- Então, herói! - Então o quê! - Você não continua? - Continua o quê! - Pois, meus pecados, a gente está brincando e vai você pára no meio! - Ai! que preguiça...

Macunaíma mal esboçava de tão chumbado. E procurando um macio nos cabelos da companheira adormecia feliz.

Então pra animá-lo, Ci empregava o estratagema sublime. Buscava no mato a folhagem de fogo da urtiga e sapecava com ela uma coça coçadeira no chuí do herói e na nalachítchi dela. Isso Macunaíma ficava que ficava um lião querendo. Ci também. E os dois brincavam que mais brincavam num deboche de ardor prodigioso.

Mas era nas noites de insônia que o gozo inventava mais. Quando todas as estrelas incendiadas derramavam sobre a Terra um óleo calorento que ninguém não suportava de tão quente, corria pelo mato uma presença de incêndio. Nem a passarinhada agüentava no ninho. Mexia inquieta o pescoço, voava pro galho em frente e no milagre mais enorme deste mundo inventava de sopetão uma alvorada preta, cantacantando que não tinha fim. A bulha era tremenda o cheiro poderoso e o calor inda mais.

Macunaíma dava um safanão na rede atirando Ci longe. Ela acordava feito fúria e crescia pra cima dele. Brincavam assim. E agora despertados inteiramente pelo gozo inventavam artes novas de brincar.

Nem bem seis meses passaram e a Mãe do Mato pariu um filho encarnado. Isso, vieram famosas mulatas da Bahia, do Recife, do Rio Grande do Norte e da Paraíba, e deram pra Mãe do Mato um laçarote rubro cor de mal, porque agora ela era mestra do cordão encarnado em todos os Pastoris de Natal. Depois foram-se embora com prazer e alegria, bailando que mais bailando, seguidas de futebóleres águias pequenos xodós seresteiros, toda essa rapaziada dorê. Macunaíma ficou de repouso o mês de preceito porém se recusou a jejuar. O pecurrucho tinha cabeça chata e Macunaíma inda a achatava mais batendo nela todos os dias e falando pro guri: - Meu filho, cresce depressa pra você ir pra São Paulo ganhar muito dinheiro.

Todas as icamiabas queriam bem o menino encarnado e no primeiro banho dele puseram todas as jóias da tribo pra que o pequeno fosse rico sempre. Mandaram buscar na Bolívia uma tesoura e enfiaram ela aberta debaixo do cabeceiro porque sinão Tutu Marambá vinha, chupava o umbigo do piá e o dedão do pé de Ci. Tutu Marambá veio, topou com a tesoura e se enganou: chupou o olho dela e foi-se embora satisfeito. Todos agora só matutavam no pecurrucho. Mandaram buscar pra ele em São Paulo os famosos sapatinhos de lã tricotados por dona Ana Francisca de Almeida Leite Morais e em Pernambuco as rendas "Rosa dos Alpes", "Flor de Guabiroba" e "Por ti padeço" tecidas pelas mãos de dona Joaquina Leitão mais conhecida pelo nome de Quinquina Cacunda. Filtravam o milhor tamarindo das irmãs Louro Vieira, de Óbidos, pro menino engolir no refresco o remedinho pra lombriga. Vida feliz, era bom!... Mas uma feita jucurutu pousou na maloca do imperador e soltou o regougo agourento. Macunaíma tremeu assustado espantou os mosquitos e caiu no pajuari por demais pra ver si espantava o medo também. Bebeu e dormiu noite inteira. Então chegou a Cobra Preta e tanto que chupou o único peito vivo de Ci que não deixou nem o apojo. E como Jiguê não conseguira moçar nenhuma das icamiabas o curumim sem ama chupou o peito da mãe no outro dia, chupou mais, deu um suspiro envenenado e morreu.

Botaram o anjinho numa igaçaba esculpida com forma de jaboti e prós boitatás não comerem os olhos do morto o enterraram mesmo no centro da taba com muitos cantos muita dança e muito pajuari.

Terminada a função a companheira de Macunaíma toda enfeitada ainda, tirou do colar uma muiraquitã famosa, deu-a pro companheiro e subiu pro céu por um cipó. É lá que Ci vive agora nos trinques pas-seando, liberta das formigas, toda enfeitada ainda, toda enfeitada de luz, virada numa estrela. É a Beta do Centauro.

No outro dia quando Macunaíma foi visitar o túmulo do filho viu que nascera do corpo uma plantinha. Trataram dela com muito cuidado e foi o guaraná. Com as frutinhas piladas dessa planta é que a gente cura muita doença e se refresca durante os calorões de Vei, a Sol.

Macunaíma, IV BOIÚNA LUNA

No outro dia bem cedo o herói padecendo saudades de Ci a companheira pra sempre inesquecível, furou o beiço inferior e fez da muiraquitã um tembetá. Sentiu que ia chorar. Chamou depressa os manos, se despediu das icamiabas e partiu.

Gauderiaram gauderiaram por todos aqueles matos sobre os quais Macunaíma imperava agora. Por toda a parte ele recebia homenagens e era sempre acompanhado pelo séquito de araras vermelhas e jandaias. Nas noites de amargura ele trepava num açaizeiro de frutas roxas como a alma dele e contemplava no céu a figura faceira de Ci. "Marvada!" que ele gemia... Então ficava muito sofrendo, muito! e invocava os deuses bons cantando cânticos de longa duração.. .

Rudá, Rudá!...

Tu que secas as chuvas, Faz com que os ventos do oceano Desembestem por minha terra Pra que as nuvens vão-se embora E a minha marvada brilhe Limpinha e firme no céu!. . .

Faz com que amansem Todas as águas dos rios Pra que eu me banhando neles Possa brincar com a marvada Refletida no espelho das águas!...

Assim. Então descia e chorava encostado no ombro de Maanape. Jiguê soluçando de pena animava o togo da caieira pra que o herói não sentisse frio. Maanape engulia as lágrimas, invocando o Acutipuru o Murucututu o Ducucu, todos esses donos do sono em acalantos assim: Acutipuru, Empresta vosso sono Pra Macunaíma Que é muito manhoso!...

Catava os carrapatos do herói e o acalmava balanceando o corpo. O herói acalmava acalmava e adormecia bem.

No outro dia os três estradeiros recomeçavam a caminhada através dos matos misteriosos. E Macunaíma era sempre seguido pelo séquito de araras vermelhas e jandaias.

Caminhando caminhando, uma feita em que a arraiada principiava enxotando a escureza da noite, escutaram longe um lamento de moça. Foram ver. Andaram légua e meia e encontraram uma cascata chorando sem parada. Macunaíma perguntou pra cascata: - Que é isso! - Chouriço! - Conta o que é.

E a cascata contou o que tinha sucedido pra ela.

- Não vê que chamo Naipi e sou filha do tuxaua Mexô-Mexoitiqui nome que na minha fala quer dizer Engatinha-Engatinha. Eu era uma boniteza de cunhatã e todos os tuxauas vizinhos desejavam dormir na minha rede e provar meu corpo mais molengo que embirossu. Porém quando algum vinha eu dava dentadas e pontapés por amor de experimentar a força dele. E todos não agüentavam e partiam sorumbáticos.

Minha tribo era escrava da boiúna Capei que morava num covão em companhia das saúvas. Sempre no tempo em que os ipês de beira-rio se amarelavam de flores a boiúna vinha na taba escolher a cunha virgem que ia dormir com ela na socava cheia de esqueletos.

Quando meu corpo chorou sangue pedindo força de homem pra servir, a suinara cantou manhãzinha nas jarinas de meu tejupá, veio Capei e me escolheu. Os ipês de beira-rio relampeavam de amarelo e todas as flores caíram nos ombros soluçando do moço Titçatê guerreiro de meu pai. A tristura talqualmente correição de sacassaia viera na taba e devorara até o silêncio.

Quando o pajé velho tirou a noite do buraco outra vez, Titçatê ajuntou as florzinhas perto dele e veio com elas pra rede da minha última noite livre. Então mordi Titçatê.

O sangue espirrou na munheca mordida porém o moço não fez caso não, gemeu de raiva amando, me encheu a boca de flores que não pude mais morder. Titçatê pulou na rede e Naipi serviu Titçatê.

Depois que brincamos feito doidos entre sangue escorrendo e as florzinhas de ipê, meu vencedor me carregou no ombro me jogou na ipeigara abicada num esconderijo de aturiás e flechou pro largo rio Zangado, fugindo da boiúna.

No outro dia quando o pajé velho guardou a noite no buraco outra vez, Capei foi me buscar e encontrou a rede sangrando vazia. Deu um urro e deitou correndo em busca nossa. Vinha vindo vinha vindo, a gente escutava o urro dela perto, mais perto pertinho e afinal as águas do rio Zangado empinaram com o corpo da boiúna ali.

Titçatê não podia mais remar desfalecido, sangrando sempre com a mordida na munheca. Por isso que não pudemos fugir. Capei me prendeu, me revirou, fez a sorte do ovo em mim, deu certo e a boiúna viu que eu já servira Titçatê.

Quis acabar com o mundo de raiva tamanha, não sei... me virou nesta pedra e atirou Titçatê na praia do rio, transformado numa planta. É aquela uma que está lá, lá em baixo, lá! É aquele mururê tão lindo que se enxerga, bracejando n'água pra mim. As flores roxas dele são os pingos de sangue da mordida, que meu frio de cascata regelou.

Capei mora em baixo de mim, examinando sempre si fui mesmo brincada pelo moço. Fui sim e passarei chorando nesta pedra até o fim do que não tem fim, mágoas de não servir mais o meu guerreiro T’çatê... Parou. O choro pingava nos joelhos de Macunaíma e ele soluçou tremido.

- Si... si... si a boiúna aparecesse eu... eu matava ela! Então se escutou um urro guaçu e Capei veio saindo d'água. E Capei era a boiúna. Macunaíma ergueu o busto relumeando de heroísmo e avançou pro monstro. Capei escancarou a goela e soltou uma nuvem de apiacás. Macunaíma bateu que mais bateu vencendo os marimbondos. O monstro atirou uma guascada tirlintando com os guizos do rabo, porém nesse momento uma formiga tracuá mordeu o calcanhar do herói. Ele agachou distraído com a dor e o rabo passou por cima dele indo bater na cara de Capei. Então ela urrou mais e deu um bote na coxa de Macunaíma. Ele só fez um afastadinho com o corpo, agarrou num rochedo e juque! decepou a cabeça da bicha.

O corpo dela se estorceu na corrente enquanto a cabeça com aqueles olhões docinhos vinha beijar vencida os pés do vingador. O herói teve medo e jogou no viado mato dentro acompanhado pelos manos.

- Vem cá, siriri, vem cá! que a cabeça gritava.

Eles chispavam mais. Correram légua e meia e olharam para trás. A cabeça de Capei vinha rolando sempre em busca deles. Correram mais e quando não podiam de fadiga treparam num bacuparizeiro ribeirinho pra ver si a cabeça continuava pra diante. Mas cabeça parou por debaixo do pau e pediu bacuparis. Macunaíma sacudiu a árvore. A cabeça catou as frutas do chão, comeu e pediu mais. Jiguê sacudiu bacuparis dentro d'água porém a cabeça falou que lá não ia não. Então Maanape atirou com toda a força uma fruta longe e enquanto a cabeça ia buscá-la os manos desceram do pau e se rasparam. Correndo correndo, légua e meia adiante deram com a casa onde morava o bacharel de Cananéia. O coroca estava na porta sentado e lia manuscritos profundos. Macunaíma falou pra ele: - Como vai, bacharel? - Menos mal, ignoto viajor.

- Tomando a fresca, não? - C’est vrai, como dizem os franceses.

- Bem, té-logo bacharel, estou meio afobado...

E chisparam outra vez. Atravessaram os sambaquis do Caputera e do Morrete num respiro. Logo adiante havia um rancho teatino. Entraram e fecharam a borta bem. Então Macunaíma pôs reparo que perdera o tembetá. Ficou desesperado porque era a única lembrança que guardava de Ci. Ia saindo pra campear a pedra porém os manos não deixaram. Não durou muito a cabeça chegou. Juque! bateu.

- Que há? - Abra a porta pra mim entrar! Porém jacaré abriu? nem eles! e a cabeça não pôde entrar. Macunaíma não sabia que a cabeça ficara escrava dele e não vinha pra fazer mal não. A cabeça esperou muito porém vendo que não abriam mesmo matutou no que ia ser. Si fosse ser água os outros bebiam, si fosse mosquito flitavam, si fosse trem de ferro descarrilava, si fosse rio punham no mapa... Resolveu: "Vou ser Lua". Gritou:

- Abram a porta, gente, que quero umas coisas! Macunaíma espiou pela fresta e avisou Jiguê já abrindo: - Está solta! Jiguê tornou a fechar a porta. Por isso que existe a expressão "Tá solto!" indicando que a gente não faz mesmo o que nos pedem.

Quando Capei viu que não abriam a porta principiou se lamentando muito e perguntou pra iandu caranguejeira si ajudava a subida pro céu.

- Meu fio Sol derrete, secundou a aranha tatamanha.

Então a cabeça pediu prós xexéus se ajuntarem e ficou noite escura.

- Meu fio ninguém não enxerga de noite, disse a aranha tatamanha.

A cabeça foi buscar um cuitê de friagem nos Andes e falou: - Despeja uma gota cada légua e meia, fio branqueia de geada. Podemos ir.

- Pois então vamos.

A iandu principiou fazendo fio no chão. Com o primeiro ventinho que brisou por ali o fio leviano se ergueu no céu. Então a aranha tatamanha subiu por ele e da ponta lá em riba derramou um bocado de geada. E enquanto a iandu caranguejeira fazia mais fio de lá pra riba, o de baixo branqueava todo. A cabeça gritou: - Adeus, meu povo, que vou pro céu! E lá foi comendo fie sobessubindo pro campo vasto do céu. Os manos abriram a porta e espiaram. Capei sempre subindo.

- Você vai mesmo pro céu, cabeça? - Uum, ela fez não podendo mais abrir a boca. Quando foi ali pela hora antes da madrugada a boiúna Capei chegou no céu. Estava gorducha de tanto fio comido e muito pálida do esforço. Todo o suor dela caía sobre a Terra em gotinhas de orvalho novo. Por causa do fio geado é que Capei é tão fria. Dantes Capei foi a boiúna mas agora é a cabeça da Lua lá no campo vasto do céu. Desde essa feita as caranguejeiras preferem fazer fio de noite.

No outro dia os manos deram um campo até a beira do rio mas campearam, campearam em vão, nada de muiraquitã. Perguntaram pra

todos os seres, aperemas sagüis tatus-mulitas tejus mussuãs da terra e das árvores, tapiucabas chabós matinta-pereras pinica-paus e aracuãs do ar, pra ave japiim e seu compadre marimbondo, pra baratinha casadeira, pro pássaro que grita "Taam!" e sua companheira que responde "Taim!", pra lagartixa que anda de pique com o ratão, prós tambaquis tucunarés piracurus curimatás do rio, os pecaís tapicurus e iererês da praia, todos esses entes vivos mas ninguém não vira nada, ninguém não sabia de nada. E os manos bateram pé na estrada outra vez, varando os domínios imperiais. O silêncio era feio e o desespero também. De vez em quando Macunaíma parava pensando na marvada... Que desejo batia nele! Parava tempo. Chorava muito tempo. As lágrimas escorregando pelas faces infantis, do herói iam lhe batizar a peitaria cabeluda. Então ele suspirava sacudindo a cabecinha: - Qual, manos! Amor primeiro não tem companheiro, não!...

Continuava a caminhar. E por toda a parte recebia homenagens e era sempre seguido pelo séquito sarapintado de jandaias e araras vermelhas.

Uma feita em que deitara numa sombra enquanto esperava os manos pescando, o Negrinho do Pastoreio pra quem Macunaíma rezava diariamente, se apiedou do panema e resolveu ajudá-lo. Mandou o passarinho uirapuru. Quando sinão quando o herói escutou um tatalar inquieto e o passarinho uirapuru pousou no joelho dele. Macunaíma fez um gesto de caceteação e enxotou o passarinho uirapuru. Nem bem minuto passado escutou de novo a bulha e o passarinho pousou na barriga dele. Macunaíma nem se amolou mais. Então o passarinho uirapuru agarrou cantando com doçura e o herói entendeu tudo o que ele cantava. E era que Macunaíma estava desinfeliz porque perdera a muiraquitã na praia do rio quando subia no bacupari. Porém agora, cantava o lamento do uirapuru, nunca mais que Macunaíma havia de ser marupiara não, porque uma traça já engulira a muiraquitã e o mariscador que apanhara a tartaruga tinha vendido a pedra verde pra um regatão peruano se chamando Venceslau Pietro Pietra. O dono do talismã enriquecera e parava fazendeiro e baludo lá em São Paulo, a cidade macota lambida pelo igarapé Tietê.

Dito isto o passarinho uirapuru executou uma letra no ar e desapareceu. Quando os manos chegaram da pesca Macunaíma falou pra eles: - Ia andando por um caminho negaceando um catingueiro e vai, presenciei um friúme no costado. Botei a mão e saiu uma lacraia mansa que me falou toda a verdade.

Então Macunaíma contou o paradeiro da muiraquitã e disse prós manos que estava disposto a ir em São Paulo procurar esse tal Venceslau Pietro Pietra e retomar o tembetá roubado.

- ... ei cascavel faça ninho si eu não topo com a muiraquitã! Si vocês venham comigo muito que bem, si não, homem, antes só do que mal acompanhado! Mas eu tenho opinião de sapo e quando encasqueto uma coisa agüento firme no toco. Hei de ir só pra tirar a prosa do passarinho uirapuru, minto! da lacraia.

Depois que discursou Macunaíma deu uma grande gargalhada imaginando na peça que pregava no passarinho. Maanape e Jiguê resolveram ir com ele.

Macunaíma, VI A FRANCESA E O GIGANTE

Maanape gostava muito de café e Jiguê muito de dormir. Macunaíma queria erguer um papiri prós três morarem porém jamais que papiri se acabava. Os puchirões goravam sempre porque Jiguê passava o dia dormindo e Maanape bebendo café. O herói teve raiva. Pegou numa colher, virou-a num bichinho e falou: - Agora você fica sovertida no pó de café. Quando mano Maanape vier beber, morda a língua dele! Então pegando num cabeceiro de algodão, virou-o numa tatorana branca e falou: - Agora você fica sovertida na maqueira. Quando mano Jiguê vier dormir, chupe o sangue dele! Maanape já vinha entrando na pensão pra beber café outra vez. O bichinho picou a língua dele. Ai! Maanape fez. Macunaíma bem sonso falou: - Está doendo, mano? Quando bichinho me pica não dói não.

Maanape teve raiva. Atirou o bichinho muito pra longe falando: - Sai, praga! Então Jiguê entrou na pensão pra tirar um corte. O marandová branquinho tanto chupou o sangue dele que até virou rosado.

- Ai! que Jiguê gritou. E Macunaíma: - Está doendo, mano? Ora veja só! Quando tatorana me chupa até gosto.

Jiguê teve raiva e atirou a tatorana longe falando: - Sai, praga! E então os três manos foram continuar a construção do papiri. Maanape e Jiguê ficaram dum lado e Macunaíma do outro pegava os tijolos que os manos atiravam. Maanape e Jiguê estavam tiriricas e desejando se vingar do mano. O herói não maliciava nada. Vai, Jiguê pegou num tijolo, porém pra não machucar muito virou-o numa bola de couro duríssima. Passou a bola pra Maanape qüe estava mais na frente e Maanape com um pontapé mandou ela bater em Macunaíma. Esborrachou todo o nariz do herói.

- Ui! que o herói fez.

Os manos bem sonsos gritaram: - Uai! está doendo, mano! Pois quando bola bate na gente nem não dói! Macunaíma teve raiva e atirando a bola com o pé bem pra longe falou: - Sai, peste! Veio onde estavam os manos: - Não faço mais papiri, pronto! E virou tijolos pedras telhas ferragens numa nuvem de içás que tomou São Paulo por três dias.

O bichinho caiu em Campinas. A tatorana caiu por aí. A bola caiu no campo. E foi assim que Maanape inventou o bicho-do-café, Jiguê a largarta-rosada e Macunaíma o futebol, três pragas.

No outro dia, com o pensamento sempre na marvada, o herói percebeu que xetrara mesmo duma vez e nunca mais que podia aparecer na rua Maranhão porque agora Venceslau Pietro Pietra já o conhecia bem. Imaginou e ali pelas quinze horas teve uma idéia. Resolveu enganar o gigante. Enfiou um membi na goela, virou Jiguê na máquina telefone e telefonou pra Venceslau Pietro Pietra que uma francesa queria falar com ele a respeito da máquina negócios. O outro secundou que sim e que viesse agorinha já porque a velha Ceiuci tinha saído com as duas filhas e podiam negociar mais folgado.

Então Macunaíma emprestou da patroa da pensão uns pares de bonitezas, a máquina ruge, a máquina meia-de-sêda, a máquina combinação com cheiro de cascasacaca, a máquina cinta aromada com capim cheiroso, a máquina decoletê úmida e patchuli, a máquina mitenes, todas essas bonitezas, dependurou dois mangarás nos peitos e se vestiu assim. Pra completar inda barreou com azul de pau campeche os olhinhos de piá que se tornaram lânguidos. Era tanta coisa que ficou pesado mas virou numa francesa tão linda que se defumou com jurema e alfinetou um raminho de pinhão paraguaio no patriotismo pra evitar quebranto. E foi no palácio de Venceslau Pietro Pietra. E Venceslau Pietro Pietra era o gigante Piaimã comedor de gente.

Saindo da pensão Macunaíma topou com um beija-flor com rabo de tesoura. Não gostou da cagüira não e pensou abandonar o randevu porém como promessa é dívida fez um esconjuro e seguiu.

Lá chegado encontrou o gigante no portão, esperando. Depois de muitos salamaleques Piaimã tirou os carrapatos da francesa e levou-a pra uma alcova lindíssima com esteios de acaricoara e tesouras de itaúba. O assoalho era um xadrez de munirapiranga e pau-cetim. A alcova estava mobiliada com as famosas redes brancas do Maranhão. Bem no centro havia uma mesa de jacarandá esculpido arranjada com louça branco-encarnada de Breves e cerâmica de Belém, disposta sobre um toalha de rendas tecidas com fibra de bananeira. Numas bacias enormes originárias das cavernas do rio Cunani fumegava tacacá com tucupi, sopa feita com um paulista vindo dos frigoríficos da Continental, uma jacarezada e polenta. Os vinhos eram um Puro de Ica subidor vindo de Iquitos, um Porto imitação, de Minas, uma caiçuma de oitenta anos, champanha de São Paulo bem gelada e um extrato de jenipapo famanado e ruim como três dias- de chuva. E inda havia dispostos com arte enfeitadeira e muitos recortados de papel, os esplêndidos bombons Falchi e biscoitos do Rio Grande empilhados em cuias dum preto brilhante de cumaté com desenhos esculpidos a canivete, provindas de Monte Alegre.

A francesa sente i numa rede e fazendo gestos graciosos principiou mastigando. Estava com muita fome e comeu bem. Depois tomou um copo de Puro pra rebater e resolveu entrar no assunto de chapéu-de-sol aberto. Foi logo perguntando si o gigante era verdade que possuía uma muiraquitã com forma de jacaré. O gigante foi lá dentro e voltou com um caramujo na mão. E puxou pra fora dele uma pedra verde. Era a muiraquitã! Macunaíma sentiu um frio por dentro de tanta comoção e percebeu que ia chorar. Mas disfarçou bem perguntando si o gigante não queria vender a pedra. Porém Venceslau Pietro Pietra piscou faceiro dizendo que vendida não dava a pedra não. Então a francesa pediu suplicando pra levar a pedra de emprestado pra casa. Venceslau Pietro Pietra mais uma vez piscou faceiro falando que de emprestado não dava a pedra também não: - Você imagina então que vou cedendo assim com duas risadas, francesa? Qual! - Mas eu estou querendo tanto a pedra!...

- Vá querendo! - Pois tanto se me dá como se me dava, regatão! - Regatão uma ova, francesa! Dobre a língua! Colecionador é que é! Foi lá dentro e voltou carregando um grajaú tamanho feito de embira e cheinho de pedra. Tinha turquesas esmeraldas berilos seixos polidos, ferragem com forma de agulha, crisólita pingo-d'água tinideira esmeril lapinha ovo-de-pomba osso-de-cavalo machados facões flechas de pedra lascada, grigris rochedos elefantes petrificados, colunas gregas, deuses egípcios, budas javaneses, obeliscos mesas mexicanas, ouro guianense, pedras ornitomorfas de Iguape, opalas do igarapé Alegre, rubis e granadas do rio Gurupi, itamotingas do rio das Garças, itacolumitos, turmalinas de Vupabuçu, blocos de titânio do rio Piriá, bauxitas do ribeirão do Macaco, fósseis calcáreos de Pirabas, pérolas de Cametá, o rochedo tamanho que Oaque o Pai do Tucano atirou com a sarabatana lá do alto daquela montanha, um litóglifo de Calamare, tinha todas essas pedras no grajaú.

Então Piaimã contou pra francesa que ele era um colecionador célebre, colecionava pedras. E a francesa era Macunaíma, o herói. Piaimã confessou que a jóia da coleção era mesmo a muiraquitã com forma de jacaré comprada por mil contos da imperatriz das icamiabas lá nas praias da lagoa Jaciuruá. E tudo era mentira do gigante. Vai, ele sentou na rede mui rente da francesa, muito! e falou murmuriando que com ele era oito ou oitenta, não vendia não emprestava a pedra mas porém era capaz de dar... "Confrome..." O gigante estava mas era querendo brincar com a francesa. Quando por causa do jeito de Piaimã o herói entendeu o que significava o tal de "conforme", ficou muito inquieto. Matutou: "Será que o gigante imagina que sou francesa mesmo!... Cai fora, peruano senvergonha"! E saiu correndo pelo jardim. O gigante correu atrás. A francesa pulou numa moita pra se esconder porém estava uma pretinha lá. Macunaíma cochilou Pra ela: - Caterina, sai daí sim? Caterina nem gesto. Macunaíma já meio impinimado com ela, cochichou: - Caterina, sai daí que sinão te bato! A mulatinha ali. Então Macunaíma deu um bruto dum tapa na peste e ficou com a mão grudada nela.

- Caterina, me larga minha mão e vai-te embora que te dou mais tapa, Caterina! Caterina era mas uma boneca de cera de carnaúba posta ali pelo gigante. Ficou bem quieta. Macunaíma deu outro tapa com a mão livre e ficou mais preso.

- Caterina, Caterina! me larga minhas mãos e vaite embora pixaim! sinão te dou um pontapé! Deu o pontapé e ficou mais preso ainda. Afinal o herói ficou inteirinho grudado na Catita. Então chegou Piaimã com um cesto. Tirou a francesa da armadilha e berrou pro cesto: - Abra a boca, cesto, abra a vossa grande boca! O cesto abriu a boca e o gigante despejou o herói nele. O cesto fechou a boca outra vez, Piaimã carregou-o e voltou. A francesa em vez de bolsa estava armada com o mênie que serve pra guardar as frechinhas da sarabatana. O gigante deixou o cesto encostado na porta de entrada e afundou casa a dentro pra guardar o mênie entre as pedras da coleção. Porém o mênie era de pano cheirando piche de caça. O gigante desconfiou daquilo e perguntou: - Vossa mãe é tão cheirosa e gordinha que nem você, criatura? E revirou os olhos de gosto. Ele estava maliciando que o mênie era filhinho da francesa. E a francesa era Macunaíma o herói. Lá do cesto ele escutou a pergunta e principiou ficando excessivamente inquieto. "Pois então será mesmo que esse tal de Venceslau imagina que passei por debaixo de algum arco-da-velha pra ter mundado a natureza? te esconjuro, credo!" Então assoprou raiz de cumacá em pó que bambeia cordas, bambeou o amarrilho do cesto e pulou pra fora. Ia saindo quando topou com o jaguará do gigante, que chamava Xaréu, nome de peixe pra não ficar hidrófobo. O herói teve medo e desembestou numa chispada mãe parque adentro. O cachorro correu atrás. Correram. Passaram Já rente à Ponta do Calabouço, tomaram rumo de Guajará Mirim e voltaram pra leste. Em Itamaracá Macunaíma passou um pouco folgado e teve tempo de comer uma dúzia de manga-jasmim que nasceu do corpo de dona Sancha, dizem. Rumaram pra sudoeste e nas alturas de Barbacena o fugitivo avistou uma vaca no alto duma ladeira calçada com pedras pontudas. Lembrou de tomar leite. Subiu esperto pela capistrana pra não cansar porém a vaca era de raça Guzerá muito brava. Escondeu o leitinho pobre. Mas Macunaíma fez uma oração assim:

Valei-me Nossa Senhora, Santo Antônio de Nazaré, A vaca mansa dá leite, A braba dá si quisé!

A vaca achou graça, deu leite e o herói chispou pro sul. Atravessando o Paraná já de volta dos pampas bem que ele queria trepar numa daquelas árvores porém os latidos estavam na cola dele e o herói isso vinha que vinha acochado pelo jaguara. Gritava: - Sai, pau! E desviava de cada castanheira, de cada pau-d'arco, de cada cumpro bom de trepar. Adiante da cidade de Serra no Espírito Santo quase arrebentou a cabeça numa pedra com muitas pinturas esculpidas que não se entendia. De certo era dinheiro enterrado... Porém Macunaíma estava com pressa e frechou pras barrancas da ilha do Bananal. Enfim enxergou um formigueiro de trinta metros abrindo um olho no rés do chão bem na frente. Barafustou subindo pelo buraco a dentro e se encolheu no alto. O jaguara ficou acuando ali.

Então o gigante veio e topou com o jaguara acuando o formigueiro. Bem na entrada a francesa perdera uma correntinha de prata. "Meu tesouro está aqui" murmurou o gigante. Então o jaguara desapareceu. Piaimã arrancou da terra com raiz e tudo uma palmeira inajá e nem deixou sinal no chão. Cortou o grelo do pau e enfiou-o pelo buraco por amor de fazer a francesa sair. Porém jacaré saiu? nem ela! Abriu as pernas e o herói ficou como se diz empalado na inajá. Vendo que a francesa não saía mesmo, Piaimã foi buscar pimenta. Trouxe uma correição das formigas anaquilãs que é pimenta de gigante, botou-as no buraco, elas ferraram no herói. Mas nem assim mesmo a francesa saiu. Piaimã jurou vingança. Pinchou fora as anaquilãs e gritou pra Macunaíma: - Agora que te agarro mesmo porque vou buscar a jararaca Elite! Quando ouviu isso o herói gelou. Com a jararaca ninguém não pode não. Gritou pro gigante: - Espera um bocado, gigante, que já saio. Porém pra ganhar tempo tirou os mangarás do peito e botou na boca do buraco falando: - Primeiro bota isso pra fora, faz favor. Piaimã estava tão furibundo que atirou os mangarás longe. Macunaíma presenciou a raiva do gigante.

Tirou a máquina decoletê, pôs ela na boca do buraco, falando outra vez: - Bota isso pra fora, faz favor.

Piaimã inda atirou o vestido mais longe. Então Macunaíma botou a máquina cinta, depois a máquina sapatos e foi fazendo assim com todas as roupas. O gigante isso já estava fumando de tão danado. Jogava tudo longe sem nem olhar o que era. Então bem de mansinho o herói pôs o sim-sinhô dele na boca do buraco e falou: - Agora me bote fora só mais esta cabaça fedorenta.

Piaimã cego de raiva agarrou no sim-sinhô sem ver o que era e atirou sim-sinhô com herói e tudo légua e meia adiante. E ficou esperando pra sempre enquanto o herói lá longe ganhava os mororós.

Chegou na pensão tomando a bênção de cachorro e chamando gato de tio, só vendo! suando esfolado com fogo nos olhos, botando os bofes pela boca. Descansou um pedaço e como estava arado de fome bateu uma fritada de sururu de Maceió, um pato seco de Marajó molhando a janta com mocororó. Descansou.

Macunaíma estava muito contrariado. Venceslau Pietro Pietra era um colecionador célebre e ele não. Suava de inveja e afinal resolveu imitar o gigante. Porém não achava graça em colecionar pedra não porque já tinha uma imundície delas na terra dele pelos espigões, nos manadeiros nas corredeiras nas seladas e gupiaras altas. E todas essas pedras já tinham sido vespas formigas mosquitos carrapatos animais passarinhos gentes e cunhas e cunhatãs e até as graças das cunhas e das cunhatãs... Praquê mais pedra que é tão pesado de carregar!... Estendeu os braços com moleza e murmurou: - Ai! que preguiça!...

Matutou matutou e resolveu. Fazia uma coleção de palavras-feias de que gostava tanto.

Se aplicou. Num átimo reuniu milietas delas em todas as falas vivas e até nas línguas grega e latina que estava estudando um bocado. A coleção italiana era completa, com palavras pra todas as horas do dia, todos os dias do ano, todas as circunstâncias da vida e sentimentos humanos. Cada bocagem! Mas a jóia da coleção era uma frase indiana que nem se fala.