Macunaíma, I Macunaíma

Macunaíma
Mário de Andrade

No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente. Era preto retinto e filho do medo da noite. Houve um momento em que o silêncio foi tão grande escutando o murmurejo do Uraricoera, que a índia, tapanhumas pariu uma criança feia. Essa criança é que chamaram de Macunaíma.

Já na meninice fez coisas de sarapantar. De primeiro: passou mais de seis anos não falando. Sio incitavam a falar exclamava: If - Ai! que preguiça!. . . e não dizia mais nada."] Ficava no canto da maloca, trepado no jirau de paxiúba, espiando o trabalho dos outros e principalmente os dois manos que tinha, Maanape já velhinho e Jiguê na força de homem. O divertimento dele era decepar cabeça de saúva. Vivia deitado mas si punha os olhos em dinheiro, Macunaíma dandava pra ganhar vintém. E também espertava quando a família ia tomar banho no rio, todos juntos e nus. Passava o tempo do banho dando mergulho, e as mulheres soltavam gritos gozados por causa dos guaimuns diz-que habitando a água-doce por lá. No mucambo si alguma cunhatã se aproximava dele pra fazer festinha, Macunaíma punha a mão nas graças dela, cunhatã se afastava. Nos machos guspia na cara. Porém respeitava os velhos, e freqüentava com aplicação a murua a poracê o torê o bacorocô a cucuicogue, todas essas danças religiosas da tribo.

Quando era pra dormir trepava no macuru pequeninho sempre se esquecendo de mijar. Como a rede da mãe estava por debaixo do berço, o herói mijava quente na velha, espantando os mosquitos bem. Então adormecia sonhando palavras-feias, imoralidades estrambólicas e dava patadas no ar.

Nas conversas das mulheres no pino do dia o assunto eram sempre as peraltagens do herói. As mulheres se riam muito simpatizadas, falando que "espinho que pinica, de pequeno já traz ponta", e numa pagelança Rei Nagô fez um discurso e avisou que o herói era inteligente.

Nem bem teve seis anos deram água num chocalho pra ele e Macunaíma principiou falando como todos. E pediu pra mãe que largasse da mandioca ralando na cevadeira e levasse ele passear no mato. A mãe não quis porque não podia largar da mandioca não. Macunaíma choramingou dia inteiro. De noite continuou chorando. No outro dia esperou com o olho esquerdo dormindo que a mãe principiasse o trabalho. Então pediu pra ela que largasse de tecer o paneiro de guarumá-membeca e levasse ele no mato passear. A mãe não quis porque não podia largar o paneiro não. E pediu pra nora, companheira de Jiguê que levasse o menino. A companheira de Jiguê era bem moça e chamava Sofará. Foi se aproximando ressabiada porém desta vez Macunaíma ficou muito quieto sem botar a mão na graça de ninguém. A moça carregou o piá nas costas e foi até o pé de aninga na beira do rio. A água parará pra inventar um ponteio de gozo nas folhas do javari. O longe estava bonito com muitos biguás e biguatingas avoando na estrada do furo. A moça botou Macunaíma na praia porém ele principiou choramingando, que tinha muita formiga!... e pediu pra Sofará que o levasse até o derrame do morro lá dentro do mato, a moça fez. Mas assim que deitou o curumim nas tiriricas, tajás e trapoerabas da serrapilheira, ele botou corpo num átimo e ficou um príncipe lindo. Andaram por lá muito.

Quando voltaram pra maloca a moça parecia muito fatigada de tanto carregar piá nas costas. Era que o herói tinha brincado muito com ela. Nem bem ela deitou Macunaíma na rede, Jiguê já chegava de pescar de puçá e a companheira não trabalhara nada. Jiguê enquizlou e depois de catar os carrapatos deu nela muito. Sofará agüentou a sova sem falar um isto.

Jiguê não desconfiou de nada e começou trançando corda com fibra de curauá. Não vê que encontrara rasto fresco de anta e queria pegar o bicho na armadilha. Macunaíma pediu um pedaço de curauá pro mano porém Jiguê falou que aquilo não era brinquedo de criança. Macunaíma principiou chorando outra vez e a noite ficou bem difícil de passar pra todos.

No outro dia Jiguê levantou cedo pra fazer arma-ilha e enxergando o menino tristinho falou:

- Bom-dia, coraçãozinho dos outros.

Porém Macunaíma fechou-se em copas carrancudo.

- Não quer falar comigo, é? - Estou de mal.

- Por causa?

Então Macunaíma pediu fibra de curauá. Jiguê olhou pra ele com ódio e mandou a companheira arranjar fio pro menino, a moça fez. Macunaíma agradeceu e foi pedir pro pai-de-terreiro que trançasse uma corda para ele e assoprasse bem nela fumaça de petum.

Quando tudo estava pronto Macunaíma pediu pra mãe que deixasse o cachiri fermentando e levasse ele no mato passear. A velha não podia por causa do trabalho mas a companheira de Jiguê mui sonsa falou pra sogra que "estava às ordens". E foi no mato com o piá nas costas.

Quando o botou nos carurus e sororocas da serrapilheira, o pequeno foi crescendo foi crescendo e virou príncipe lindo. Falou pra Sofará esperar um bocadinho que já voltava pra brincarem e foi no bebedouro da anta armar um laço. Nem bem voltaram do passeio, tardinha, Jiguê já chegava também de prender a armadilha no rasto da anta. A companheira não trabalhara nada. Jiguê ficou fulo e antes de catar os carrapatos bateu nela muito. Mas Sofará agüentou a coca com paciência.

No outro dia a arraiada inda estava acabando de trepar nas árvores, Macunaíma acordou todos, fazendo um bué medonho, que fossem! que fossem no bebedouro buscar a bicha que ele caçara!... Porém ninguém não acreditou e todos principiaram o trabalho do dia.

Macunaíma ficou muito contrariado e pediu pra Sofará que desse uma chegadinha no bebedouro só pra ver. A moça fez e voltou falando pra todos que de fato estava no laço uma anta muito grande já morta. Toda a tribo foi buscar a bicha, matutando na inteligência do curumim. Quando Jiguê chegou com a corda de curauá vazia, encontrou todos tratando da caça, ajudou. E quando foi pra repartir não deu nem um pedaço de carne pra Macunaíma, só tripas. O herói jurou vingança.

No outro dia pediu pra Sofará que levasse ele passear e ficaram no mato até a bôca-da-noite. Nem bem o menino tocou no folhiço e virou num príncipe fogoso. Brincaram. Depois de brincarem três feitas,

correram mato fora fazendo festinhas um pro outro. Depois das festinhas de cotucar, fizeram a das cócegas, depois se enterraram na areia, depois se queimaram com fogo de palha, isso foram muitas festinhas. Macunaíma pegou num tronco de copaíba e se escondeu por detrás, da piranheira. Quando Sofará veio correndo, ele deu com o pau na cabeça dela. Fez uma brecha que a moça caiu torcendo de riso aos pés dele. Puxou-o por uma perna. Macunaíma gemia de gosto se agarrando no tronco gigante. Então a moça abocanhou o dedão do pé dele e engoliu. Macunaíma chorando de alegria tatuou o corpo dela com o sangue do pé. Depois retesou os músculos, se erguendo num trapézio de cipó e aos pulos atingiu num átimo o galho mais alto da piranheira. Sofará trepava atrás. O ramo fininho vergou oscilando com o peso do príncipe. Quando a moça chegou também no tope eles brincaram outra vez balanceando no céu. Depois de brincarem Macunaíma quis fazer uma festa em Sofará. Dobrou o corpo todo na violência dum puxão mas não pôde continuar, galho quebrou e ambos despencaram aos emboléus até se esborracharem no chão. Quando o herói voltou da sapituca procurou a moça em redor, não estava. Ia se erguendo pra buscá-la porém do galho baixo em riba dele furou o silêncio o miado temível da suçuarana. O herói se estatelou de medo e fechou os olhos pra ser comido sem ver. Então se escutou um risinho e Macunaíma tomou com uma gusparada no peito, era a moça. Macunaíma principiou atirando pedras nela e quando feria, Sofará gritava de excitação tatuando o corpo dele em baixo com o sangue espirrado. Afinal uma pedra lascou o canto da boca da moça e moeu três dentes. Ela pulou do galho e juque! tombou sentada na barriga do herói que a envolveu com o corpo todo, uivando de prazer. E brincaram mais outra vez.

Já a estrela Papacéia brilhava no céu quando a moça voltou parecendo muito fatigada de tanto carregar piá nas costas. Porém Jiguê desconfiado seguira os dois no mato, enxergara a transformação e o resto. Jiguê era muito bobo. Teve raiva. Pegou num rabo-de-tatu e chegou-o com vontade na bunda do herói. O berreiro foi tão imenso que encurtou o tamanhão da noite e muitos pássaros caíram de susto no chão e se transformaram em pedra.

Quando Jiguê não pôde mais surrar, Macunaíma correu até a capoeira, mastigou raiz de cardeiro e voltou são. Jiguê levou Sofará pro pai dela e dormiu folgado na rede.

Macunaíma, II MAIORIDADE

Jiguê era muito bobo e no outro dia apareceu puxando pela mão uma cunha. Era a companheira nova dele e chamava Iriqui. Ela trazia sempre um ratão vivo escondido na maçaroca dos cabelos e faceirava muito. Pintava a cara com araraúba e jenipapo e todas as manhãs passava coquinho de assai nos beiços que ficavam totalmente roxos. Depois esfregava limão-de-caiena por cima e os beiços viravam totalmente encarnados. Então Iriqui se envolvia num manto de algodão listrado com preto de acariúba e verde de tatajuba e aromava os cabelos com essência de umiri, era linda.

Ora depois de todos comerem a anta de Macunaíma a fome bateu no mocambo. Caça, ninguém não pegava caça mais, nem algum tatu-galinha aparecia! e por causa de Maanape ter matado um boto pra comerem, o sapo cunauru chamado Maraguigana pai do boto fitou enfezado. Mandou a enchente e o milharal apodreceu. Comeram tudo, até a crueira dura se acabou e o fogaréu de noite e dia não moqueava nada não, era só pra remediar a friagem que caiu. Não havia pra gente assar nele nem uma isca de jobá.

Então Macunaíma quis se divertir um pouco. Falou prós manos que inda tinha muita piaba muito jeju muito matrinchão e jatuaranas, todos esses peixes do rio, fossem bater timbó! Maanape disse:

- Não se encontra mais timbó. Macunaíma disfarçando secundou: - Junto daquela grota onde tem dinheiro enterrado enxerguei um despotismo de timbó.

- Então venha com a gente pra mostrar onde que é.

Foram. A margem estava traiçoeira e nem se achava bem o que era terra o que era rio entre as mamoranas copadas. Maanape e Jiguê procuravam procuravam enlameados até os dentes, degringolando juque! nos barreiros ocultos pela inundação. E pulavam se livrando dos buracos, aos berros, com as mãos pra trás por causa dos candirus safadinhos querendo entrar por eles. Macunaíma ria por dentro vendo as micagens dos manos campeando timbó. Fingia campear também mas não dava passo não, bem enxutinho no firme. Quando os manos passavam perto dele, se agachava e gemia de fadiga.

- Deixe de trabucar assim, piá!

Então Macunaíma sentou numa barranca do rio e batendo com os pés n'água espantou os mosquitos. E eram muitos mosquitos, piuns maruins arurus tatuquiras muriçocas meruanhas mariguis borrachudos varejas, toda essa mosquitada.

Quando foi de tardezinha os manos vieram buscar Macunaíma tiriricas por não terem topado com nenhum pé de timbó. O herói teve medo e disfarçou:

- Acharam? - Que achamos nada! - Pois foi aqui mesmo que enxerguei timbó. Timbó já foi gente um dia que nem nós... Presenciou que andavam campeando ele e sorveteu. Timbó foi gente um dia que nem nós...

Os manos se admiraram da inteligência do menino e voltaram os três pra maloca.

Macunaíma estava muito contrariado por causa da fome. No outro dia falou pra velha:

- Mãe, quem que leva nossa casa pra outra banda do rio lá no teso, quem que leva? Fecha os olhos um bocadinho, velha, e pergunta assim.

A velha fez. Macunaíma pediu pra ela ficar mais tempo com os olhos fechados e carregou tejupar marombas flechas piquás sapiquás corotes urupemas redes, todos esses trens pra um aberto do mato lá no teso do outro lado do rio. Quando a velha abriu os olhos estava tudo lá e tinha caça peixes, bananeiras dando, tinha comida por demais. Então foi cortar banana.

- Inda que mal lhe pergunte, mãe, porque a senhora arranca tanta pacova assim! - Levar pra vosso mano Jiguê com a linda Iriqui e pra vosso mano Maanape que estão padecendo fome.

Macunaíma ficou muito contrariado. Maginou maginou e disse pra velha:

- Mãe, quem que leva nossa casa pra outra banda do rio no banhado, quem que leva? Pergunta assim! A velha fez. Macunaíma pediu pra ela ficar com os olhos fechados e levou todos os carregos, tudo, pro lugar em que estavam de já-hoje

no mondongo imundado. Quando a velha abriu os olhos tudo estava no lugar de dantes, vizinhando com os tejupares de mano Maanape e de mano Jiguê com a linda Iriqui. E todos ficaram roncando de fome outra vez.

Então a velha teve uma raiva malvada. Carregou o herói na cintura e partiu. Atravessou o mato e chegou no capoeirão chamado Cafundó do Judas. Andou légua e meia nele, nem se enxergava mato mais, era um coberto plano apenas movimentado com o pulinho dos cajueiros. Nem guaxe animava a solidão. A velha botou o curumim no campo onde ele podia crescer mais não e falou:

- Agora vossa mãe vai embora. Tu ficas perdido no coberto e podes crescer mais não.

E desapareceu. Macunaíma assuntou o deserto e sentiu que ia chorar. Mas não tinha ninguém por ali, não chorou não. Criou coragem e botou pé na estrada, tremelicando com as perninhas de arco. Vagamundou de déu em déu semana, até que topou com o Currupira inoqueando carne, acompanhado do cachorro dele Papamel. E o Currupira vive no grelo do tucunzeiro e pede fumo pra gente. Macunaíma falou:

- Meu avô, dá caça pra mim comer? - Sim, Currupira fez.

Cortou carne da perna moqueou e deu pro menino, perguntando:

- O que você está fazendo na capoeira, rapaiz! - Passeando.

- Não diga! - Pois é, passeando...

Então contou o castigo da mãe por causa dele ter sido malévolo prós manos. E contando o transporte da casa de novo pra deixa onde não tinha caça deu uma grande gargalhada. O Currupira olhou pra ele e resmungou:

- Tu não é mais curumi, rapaiz, tu não é mais curumi não ... Gente grande que faiz isso...

Macunaíma agradeceu e pediu pro Currupira ensinar o caminho pro mocambo dos Tapanhumas. O Currupira estava querendo mas era comer o herói, ensinou falso:

- Tu vai por aqui, menino-home, vai por aqui, passa pela frente daquele pau, quebra a mão esquerda, vira e volta por debaixo dos meus uaiariquinizês.

Macunaíma foi fazer a volta porém chegado na frente do pau, cocou a perninha e murmurou: - Ai! que preguiça!... e seguiu direito.

O Currupira esperou bastante porém curumim não chegava... Pois então o monstro amontou no viado, que é o cavalo dele, fincou o pé redondo na virilha do corredor e lá se foi gritando: - Carne de minha perna! carne de minha perna! Lá de dentro da barriga do herói a carne respondeu: - Que foi? Macunaíma apertou o passo e entrou correndo na caatinga porém o Currupira corria mais que ele e o menino isso vinha que vinha acochado pelo outro.

- Carne de minha perna! carne de minha perna! A carne secundava: - Que foi? O piá estava desesperado. Era dia do casamento da raposa e a velha Vei, a Sol, relampeava nas gotinhas de chuva debulhando luz feito milho. Macunaíma chegou perto duma poça, bebeu água de lama e vomitou a carne.

- Carne de minha perna! carne de minha perna! que o Currupira vinha gritando.

- Que foi? secundou a carne já na poça. Macunaíma ganhou os bredos por outro lado e escapou.

Légua e meia adiante por detrás dum formigueiro escutou uma voz cantando assim: "Acuti pita canhém..." lentamente.

Foi lá e topou com a cotia farinhando mandioca num tipiti de j achara.

- Minha vó, dá aipim pra mim comer? - Sim, cotia fez. Deu aipim pro menino, perguntando: - Quê que você está fazendo na caatinga, meu neto? - Passeando.

- Ah o quê!

- Passeando, então!

Contou como enganara o Currupira e deu uma grande gargalhada. A cotia olhou pra ele e resmungou:

- Culumi faz isso não, meu neto, culumi faz isso não. .. Vou te igualar o corpo com o bestunto.

Então pegou na gamela cheia de caldo envenenado de aipim e jogou a lavagem no piá. Macunaíma fastou sarapantado mas só conseguiu livrar a cabeça, todo o resto do corpo se molhou. O herói deu um espirro e botou corpo. Foi desempenando crescendo fortificando e ficou do tamanho dum home taludo. Porém a cabeça não molhada ficou pra sempre rombuda e com carinha enjoativa de piá.

Macunaíma agradeceu o feito e frechou cantando pro mocambo nativo. A noite vinha bezourenta enfiando as formigas na terra e tirando os mosquitos d'água. Fazia um calor de ninho no ar. A velha tapanhumas escutou a voz do filho no longe cinzado e se espantou: Macunaíma apareceu de cara amarrada e falou pra ela:

- Mãe, sonhei que caiu meu dente.

- Isso é morte de parente, comentou a velha.

- Bem que sei. A senhora vive mais uma Sol só. Isso mesmo porque me pariu.

No outro dia os manos foram pescar e caçar, a velha foi no roçado e Macunaíma ficou só com a companheira de Jiguê. Então ele virou na formiga quenquém e mordeu Iriqui pra fazer festa nela. Mas a moça atirou a quenquém longe. Então Macunaíma virou num pé de urucum. A linda Iriqui riu, colheu as sementes se faceirou toda pintando a cara e os distintivos, Ficou lindíssima. Então Macunaíma, de gostoso, virou gente outra feita e morou com a companheira de Jiguê.

Quando os manos voltaram da caça Jiguê percebeu a troca logo, porém Maanape falou pra ele que agora Macunaíma estava homem pra sempre e troncudo. Maanape era feiticeiro. Jiguê viu que a maloca estava cheia de alimentos, tinha pacova tinha milho tinha macaxeira, tinha alua e cachiri, tinha maparás e camorins pescados, maracujá-michira ata abio sapota sapotilha, tinha passoca de viado e carne fresca de cutiara, todos esses comes e bebes bons... Jiguê conferiu que não pagava a pena brigar com o mano e deixou a linda Iriqui pra ele. Deu um suspiro catou os carrapatos e dormiu folgado na rede.

No outro dia Macunaíma depois de brincar cedinho com a linda Iriqui, saiu pra dar uma voltinha. Atravessou o reino encantado da Pedra Bonita em Pernambuco e quando estava chegando na cidade de Santarém topou com uma viada parida.

- Essa eu caço! ele fez. E perseguiu a viada. Esta escapuliu fácil mas o herói pôde pegar o filhinho dela que nem não andava quase, se escondeu por detrás duma carapanaúba e cotucando o viadinho fez ele berrar. A viada ficou feito louca, esbugalhou os olhos parou turtuveou e veio vindo veio vindo parou ali mesmo defronte chorando de amor. Então o herói flechou a viada parida. Ela caiu esperneou um bocado e ficou rija estirada no chão. O herói cantou vitória. Chegou perto da viada olhou que mais olhou e deu um grito, desmaiando. Tinha sido uma peça do Anhanga... Não era viada não, era a própria mãe tapanhumas que Macunaíma flechara e estava morta ali, toda arranhada com os espinhos das titaras e mandacarus dó mato.

Quando o herói voltou da sapituca foi chamar os manos e os três chorando muito passaram a noite de guarda bebendo oloniti e comendo carimã com peixe. Madrugadinha pousaram o corpo da velha numa rede e foram enterrá-la por debaixo duma pedra no lugar chamado Pai da Tocandeira. Maanape que era um catimbozeiro de marca maior, foi que gravou o epitáfio. E era assim:

Jejuaram o tempo que o preceito mandava e Macunaíma gastou o jejum se lamentando heroicamente. A barriga da morta foi inchando foi inchando e no fim das chuvas tinha virado num cerro macio. Então Macunaíma deu a mão pra Iriqui, Iriqui deu a mão pra Maanape, Maanape deu a mão pra Jiguê e os quatro partiram por esse mundo.

Macunaíma, III Ci, MÃE DO MATO

Uma feita os quatro iam seguindo por um caminho no mato e estavam penando muito de sede, longe dos igapós e das lagoas. Não tinha nem mesmo umbu no bairro e Vei, a Sol, esfiapando por entre a folhagem guascava sem parada o lombo dos andarengos. Suavam como numa pagelança em que todos tivessem besuntado o corpo com azeite de piquiá, marchavam. De repente Macunaíma parou riscando a noite do silêncio com um gesto imenso de alerta. Os outros estacaram. Não se escutava nada porém Macunaíma sussurrou: - Tem coisa.

Deixaram a linda Iriqui se enfeitando sentada nas raízes duma samaúma e avançaram cautelosos. Já Vei estava farta de tanto guascar o lombo dos três manos quando légua e meia adiante Macunaíma escoteiro topou com uma cunha dormindo. Era Ci, Mãe do Mala Logo viu pelo peito destro seco dela, que a moça fazia parte dessa tribo de mulheres sozinhas parando lá nas praias da lagoa Espelho da Lua, coada pela Nhamundá. A cunha era linda com o corpo chupado pelos vícios, colorido com genipapo.

O herói se atirou por cima dela pra brincar. Ci não queria. Fez lança de flecha tridente enquanto Macunaíma puxava da pageú. Foi um pega tremendo e por debaixo da copada reboavam os berros dos briguentos diminuindo de medo os corpos dos passarinhos. O herói apanhava. Recebera já um murro de fazer sangue no nariz e um lapo fundo de txara no rabo. A icamiaba não tinha nem um arranhãozinho e cada gesto que fazia era mais sangue no corpo do herói soltando berros formidandos que diminuíam de medo os corpos dos passarinhos. Afinal se vendo nas amarelas porque não podia mesmo com a icamiaba, o herói deitou fugindo chamando pelos manos: - Me acudam que sinão eu mato! me acudam que sinão eu mato! Os manos vieram e agarraram Ci. Maanape trançou os braços dela por detrás enquanto Jiguê com a murucu lhe dava uma porrada no coco. E a icamiaba caiu sem auxílio nas samambaias da serrapilheira. Quando ficou bem imóvel, Macunaíma se aproximou e brincou com a Mãe do Mato. Vieram então muitas jandaias, muitas araras vermelhas

tuins coricas periquitos, muitos papagaios saudar Macunaíma, o novo Imperador do Mato-Virgem.

E os três manos seguiram com a companheira nova. Atravessaram a cidade das Flores evitaram o rio das Amarguras passando por debaixo do salto da Felicidade, tomaram a estrada dos Prazeres e chegaram no capão de Meu Bem que fica nos cerros da Venezuela. Foi de lá que Macunaíma imperou sobre os matos misteriosos, enquanto Ci comandava nos assaltos as mulheres empunhando txaras de três pontas.

O herói vivia sossegado. Passava os dias marupiara na rede matando formigas taiocas, chupitando golinhos estalados de pajuari e quando agarrava cantando companhado pelos sons gotejantes do cotcho, os matos reboavam com doçura adormecendo as cobras os carrapatos os mosquitos as formigas e os deuses ruins.

De noite Ci chegava recendendo resina de pau, sangrando das brigas e trepava na rede que ela mesmo tecera com fios de cabelo. Os dois brincavam e depois ficavam rindo um pro outro.

Ficavam rindo longo tempo, bem juntos. Ci aromava tanto que Macunaíma tinha tonteiras de moleza.

- Puxa como você cheira, benzinho! que ele murmurava gozado. E escancarava as narinas mais. Vinha uma tonteira tão macota que o sono principiava pingando das pálpebras dele. Porém a Mãe do Mato inda não estava satisfeita não e com um jeito de rede que enlaçava os dois convidava o companheiro para mais brinquedo. Morto de soneira, infernizado, Macunaíma brincava para não desmentir a fama só porém quando Ci queria rir com ele de satisfação: - Ai! que preguiça!...

que o herói suspirava enfarado. E dando as costas para ela adormecia bem. Mas Ci queria brincar inda mais... Convidava convidava... O herói ferrado no sono. Então a Mãe do Mato pegava na txara e cotucava o companheiro. Macunaíma se acordava dando grandes gargalhadas estorcegando de cócegas.

- Faz isso não, oferecida! - Faço! - Deixa a gente dormir, meu bem...

- Vamos brincar.

- Ai! que preguiça!...

E brincavam mais outra vez Porém nos dias de muito pajuari bebido, Ci encontra o Imperador do Mato-Virgem largado por aí num porre mãe. Iam brincar e o herói esquecia no meio.

- Então, herói! - Então o quê! - Você não continua? - Continua o quê! - Pois, meus pecados, a gente está brincando e vai você pára no meio! - Ai! que preguiça...

Macunaíma mal esboçava de tão chumbado. E procurando um macio nos cabelos da companheira adormecia feliz.

Então pra animá-lo, Ci empregava o estratagema sublime. Buscava no mato a folhagem de fogo da urtiga e sapecava com ela uma coça coçadeira no chuí do herói e na nalachítchi dela. Isso Macunaíma ficava que ficava um lião querendo. Ci também. E os dois brincavam que mais brincavam num deboche de ardor prodigioso.

Mas era nas noites de insônia que o gozo inventava mais. Quando todas as estrelas incendiadas derramavam sobre a Terra um óleo calorento que ninguém não suportava de tão quente, corria pelo mato uma presença de incêndio. Nem a passarinhada agüentava no ninho. Mexia inquieta o pescoço, voava pro galho em frente e no milagre mais enorme deste mundo inventava de sopetão uma alvorada preta, cantacantando que não tinha fim. A bulha era tremenda o cheiro poderoso e o calor inda mais.

Macunaíma dava um safanão na rede atirando Ci longe. Ela acordava feito fúria e crescia pra cima dele. Brincavam assim. E agora despertados inteiramente pelo gozo inventavam artes novas de brincar.

Nem bem seis meses passaram e a Mãe do Mato pariu um filho encarnado. Isso, vieram famosas mulatas da Bahia, do Recife, do Rio Grande do Norte e da Paraíba, e deram pra Mãe do Mato um laçarote rubro cor de mal, porque agora ela era mestra do cordão encarnado em todos os Pastoris de Natal. Depois foram-se embora com prazer e alegria, bailando que mais bailando, seguidas de futebóleres águias pequenos xodós seresteiros, toda essa rapaziada dorê. Macunaíma ficou de repouso o mês de preceito porém se recusou a jejuar. O pecurrucho tinha cabeça chata e Macunaíma inda a achatava mais batendo nela todos os dias e falando pro guri: - Meu filho, cresce depressa pra você ir pra São Paulo ganhar muito dinheiro.

Todas as icamiabas queriam bem o menino encarnado e no primeiro banho dele puseram todas as jóias da tribo pra que o pequeno fosse rico sempre. Mandaram buscar na Bolívia uma tesoura e enfiaram ela aberta debaixo do cabeceiro porque sinão Tutu Marambá vinha, chupava o umbigo do piá e o dedão do pé de Ci. Tutu Marambá veio, topou com a tesoura e se enganou: chupou o olho dela e foi-se embora satisfeito. Todos agora só matutavam no pecurrucho. Mandaram buscar pra ele em São Paulo os famosos sapatinhos de lã tricotados por dona Ana Francisca de Almeida Leite Morais e em Pernambuco as rendas "Rosa dos Alpes", "Flor de Guabiroba" e "Por ti padeço" tecidas pelas mãos de dona Joaquina Leitão mais conhecida pelo nome de Quinquina Cacunda. Filtravam o milhor tamarindo das irmãs Louro Vieira, de Óbidos, pro menino engolir no refresco o remedinho pra lombriga. Vida feliz, era bom!... Mas uma feita jucurutu pousou na maloca do imperador e soltou o regougo agourento. Macunaíma tremeu assustado espantou os mosquitos e caiu no pajuari por demais pra ver si espantava o medo também. Bebeu e dormiu noite inteira. Então chegou a Cobra Preta e tanto que chupou o único peito vivo de Ci que não deixou nem o apojo. E como Jiguê não conseguira moçar nenhuma das icamiabas o curumim sem ama chupou o peito da mãe no outro dia, chupou mais, deu um suspiro envenenado e morreu.

Botaram o anjinho numa igaçaba esculpida com forma de jaboti e prós boitatás não comerem os olhos do morto o enterraram mesmo no centro da taba com muitos cantos muita dança e muito pajuari.

Terminada a função a companheira de Macunaíma toda enfeitada ainda, tirou do colar uma muiraquitã famosa, deu-a pro companheiro e subiu pro céu por um cipó. É lá que Ci vive agora nos trinques pas-seando, liberta das formigas, toda enfeitada ainda, toda enfeitada de luz, virada numa estrela. É a Beta do Centauro.

No outro dia quando Macunaíma foi visitar o túmulo do filho viu que nascera do corpo uma plantinha. Trataram dela com muito cuidado e foi o guaraná. Com as frutinhas piladas dessa planta é que a gente cura muita doença e se refresca durante os calorões de Vei, a Sol.

Macunaíma, IV BOIÚNA LUNA

No outro dia bem cedo o herói padecendo saudades de Ci a companheira pra sempre inesquecível, furou o beiço inferior e fez da muiraquitã um tembetá. Sentiu que ia chorar. Chamou depressa os manos, se despediu das icamiabas e partiu.

Gauderiaram gauderiaram por todos aqueles matos sobre os quais Macunaíma imperava agora. Por toda a parte ele recebia homenagens e era sempre acompanhado pelo séquito de araras vermelhas e jandaias. Nas noites de amargura ele trepava num açaizeiro de frutas roxas como a alma dele e contemplava no céu a figura faceira de Ci. "Marvada!" que ele gemia... Então ficava muito sofrendo, muito! e invocava os deuses bons cantando cânticos de longa duração.. .

Rudá, Rudá!...

Tu que secas as chuvas, Faz com que os ventos do oceano Desembestem por minha terra Pra que as nuvens vão-se embora E a minha marvada brilhe Limpinha e firme no céu!. . .

Faz com que amansem Todas as águas dos rios Pra que eu me banhando neles Possa brincar com a marvada Refletida no espelho das águas!...

Assim. Então descia e chorava encostado no ombro de Maanape. Jiguê soluçando de pena animava o togo da caieira pra que o herói não sentisse frio. Maanape engulia as lágrimas, invocando o Acutipuru o Murucututu o Ducucu, todos esses donos do sono em acalantos assim: Acutipuru, Empresta vosso sono Pra Macunaíma Que é muito manhoso!...

Catava os carrapatos do herói e o acalmava balanceando o corpo. O herói acalmava acalmava e adormecia bem.

No outro dia os três estradeiros recomeçavam a caminhada através dos matos misteriosos. E Macunaíma era sempre seguido pelo séquito de araras vermelhas e jandaias.

Caminhando caminhando, uma feita em que a arraiada principiava enxotando a escureza da noite, escutaram longe um lamento de moça. Foram ver. Andaram légua e meia e encontraram uma cascata chorando sem parada. Macunaíma perguntou pra cascata: - Que é isso! - Chouriço! - Conta o que é.

E a cascata contou o que tinha sucedido pra ela.

- Não vê que chamo Naipi e sou filha do tuxaua Mexô-Mexoitiqui nome que na minha fala quer dizer Engatinha-Engatinha. Eu era uma boniteza de cunhatã e todos os tuxauas vizinhos desejavam dormir na minha rede e provar meu corpo mais molengo que embirossu. Porém quando algum vinha eu dava dentadas e pontapés por amor de experimentar a força dele. E todos não agüentavam e partiam sorumbáticos.

Minha tribo era escrava da boiúna Capei que morava num covão em companhia das saúvas. Sempre no tempo em que os ipês de beira-rio se amarelavam de flores a boiúna vinha na taba escolher a cunha virgem que ia dormir com ela na socava cheia de esqueletos.

Quando meu corpo chorou sangue pedindo força de homem pra servir, a suinara cantou manhãzinha nas jarinas de meu tejupá, veio Capei e me escolheu. Os ipês de beira-rio relampeavam de amarelo e todas as flores caíram nos ombros soluçando do moço Titçatê guerreiro de meu pai. A tristura talqualmente correição de sacassaia viera na taba e devorara até o silêncio.

Quando o pajé velho tirou a noite do buraco outra vez, Titçatê ajuntou as florzinhas perto dele e veio com elas pra rede da minha última noite livre. Então mordi Titçatê.

O sangue espirrou na munheca mordida porém o moço não fez caso não, gemeu de raiva amando, me encheu a boca de flores que não pude mais morder. Titçatê pulou na rede e Naipi serviu Titçatê.

Depois que brincamos feito doidos entre sangue escorrendo e as florzinhas de ipê, meu vencedor me carregou no ombro me jogou na ipeigara abicada num esconderijo de aturiás e flechou pro largo rio Zangado, fugindo da boiúna.

No outro dia quando o pajé velho guardou a noite no buraco outra vez, Capei foi me buscar e encontrou a rede sangrando vazia. Deu um urro e deitou correndo em busca nossa. Vinha vindo vinha vindo, a gente escutava o urro dela perto, mais perto pertinho e afinal as águas do rio Zangado empinaram com o corpo da boiúna ali.

Titçatê não podia mais remar desfalecido, sangrando sempre com a mordida na munheca. Por isso que não pudemos fugir. Capei me prendeu, me revirou, fez a sorte do ovo em mim, deu certo e a boiúna viu que eu já servira Titçatê.

Quis acabar com o mundo de raiva tamanha, não sei... me virou nesta pedra e atirou Titçatê na praia do rio, transformado numa planta. É aquela uma que está lá, lá em baixo, lá! É aquele mururê tão lindo que se enxerga, bracejando n'água pra mim. As flores roxas dele são os pingos de sangue da mordida, que meu frio de cascata regelou.

Capei mora em baixo de mim, examinando sempre si fui mesmo brincada pelo moço. Fui sim e passarei chorando nesta pedra até o fim do que não tem fim, mágoas de não servir mais o meu guerreiro T’çatê... Parou. O choro pingava nos joelhos de Macunaíma e ele soluçou tremido.

- Si... si... si a boiúna aparecesse eu... eu matava ela! Então se escutou um urro guaçu e Capei veio saindo d'água. E Capei era a boiúna. Macunaíma ergueu o busto relumeando de heroísmo e avançou pro monstro. Capei escancarou a goela e soltou uma nuvem de apiacás. Macunaíma bateu que mais bateu vencendo os marimbondos. O monstro atirou uma guascada tirlintando com os guizos do rabo, porém nesse momento uma formiga tracuá mordeu o calcanhar do herói. Ele agachou distraído com a dor e o rabo passou por cima dele indo bater na cara de Capei. Então ela urrou mais e deu um bote na coxa de Macunaíma. Ele só fez um afastadinho com o corpo, agarrou num rochedo e juque! decepou a cabeça da bicha.

O corpo dela se estorceu na corrente enquanto a cabeça com aqueles olhões docinhos vinha beijar vencida os pés do vingador. O herói teve medo e jogou no viado mato dentro acompanhado pelos manos.

- Vem cá, siriri, vem cá! que a cabeça gritava.

Eles chispavam mais. Correram légua e meia e olharam para trás. A cabeça de Capei vinha rolando sempre em busca deles. Correram mais e quando não podiam de fadiga treparam num bacuparizeiro ribeirinho pra ver si a cabeça continuava pra diante. Mas cabeça parou por debaixo do pau e pediu bacuparis. Macunaíma sacudiu a árvore. A cabeça catou as frutas do chão, comeu e pediu mais. Jiguê sacudiu bacuparis dentro d'água porém a cabeça falou que lá não ia não. Então Maanape atirou com toda a força uma fruta longe e enquanto a cabeça ia buscá-la os manos desceram do pau e se rasparam. Correndo correndo, légua e meia adiante deram com a casa onde morava o bacharel de Cananéia. O coroca estava na porta sentado e lia manuscritos profundos. Macunaíma falou pra ele: - Como vai, bacharel? - Menos mal, ignoto viajor.

- Tomando a fresca, não? - C’est vrai, como dizem os franceses.

- Bem, té-logo bacharel, estou meio afobado...

E chisparam outra vez. Atravessaram os sambaquis do Caputera e do Morrete num respiro. Logo adiante havia um rancho teatino. Entraram e fecharam a borta bem. Então Macunaíma pôs reparo que perdera o tembetá. Ficou desesperado porque era a única lembrança que guardava de Ci. Ia saindo pra campear a pedra porém os manos não deixaram. Não durou muito a cabeça chegou. Juque! bateu.

- Que há? - Abra a porta pra mim entrar! Porém jacaré abriu? nem eles! e a cabeça não pôde entrar. Macunaíma não sabia que a cabeça ficara escrava dele e não vinha pra fazer mal não. A cabeça esperou muito porém vendo que não abriam mesmo matutou no que ia ser. Si fosse ser água os outros bebiam, si fosse mosquito flitavam, si fosse trem de ferro descarrilava, si fosse rio punham no mapa... Resolveu: "Vou ser Lua". Gritou:

- Abram a porta, gente, que quero umas coisas! Macunaíma espiou pela fresta e avisou Jiguê já abrindo: - Está solta! Jiguê tornou a fechar a porta. Por isso que existe a expressão "Tá solto!" indicando que a gente não faz mesmo o que nos pedem.

Quando Capei viu que não abriam a porta principiou se lamentando muito e perguntou pra iandu caranguejeira si ajudava a subida pro céu.

- Meu fio Sol derrete, secundou a aranha tatamanha.

Então a cabeça pediu prós xexéus se ajuntarem e ficou noite escura.

- Meu fio ninguém não enxerga de noite, disse a aranha tatamanha.

A cabeça foi buscar um cuitê de friagem nos Andes e falou: - Despeja uma gota cada légua e meia, fio branqueia de geada. Podemos ir.

- Pois então vamos.

A iandu principiou fazendo fio no chão. Com o primeiro ventinho que brisou por ali o fio leviano se ergueu no céu. Então a aranha tatamanha subiu por ele e da ponta lá em riba derramou um bocado de geada. E enquanto a iandu caranguejeira fazia mais fio de lá pra riba, o de baixo branqueava todo. A cabeça gritou: - Adeus, meu povo, que vou pro céu! E lá foi comendo fie sobessubindo pro campo vasto do céu. Os manos abriram a porta e espiaram. Capei sempre subindo.

- Você vai mesmo pro céu, cabeça? - Uum, ela fez não podendo mais abrir a boca. Quando foi ali pela hora antes da madrugada a boiúna Capei chegou no céu. Estava gorducha de tanto fio comido e muito pálida do esforço. Todo o suor dela caía sobre a Terra em gotinhas de orvalho novo. Por causa do fio geado é que Capei é tão fria. Dantes Capei foi a boiúna mas agora é a cabeça da Lua lá no campo vasto do céu. Desde essa feita as caranguejeiras preferem fazer fio de noite.

No outro dia os manos deram um campo até a beira do rio mas campearam, campearam em vão, nada de muiraquitã. Perguntaram pra

todos os seres, aperemas sagüis tatus-mulitas tejus mussuãs da terra e das árvores, tapiucabas chabós matinta-pereras pinica-paus e aracuãs do ar, pra ave japiim e seu compadre marimbondo, pra baratinha casadeira, pro pássaro que grita "Taam!" e sua companheira que responde "Taim!", pra lagartixa que anda de pique com o ratão, prós tambaquis tucunarés piracurus curimatás do rio, os pecaís tapicurus e iererês da praia, todos esses entes vivos mas ninguém não vira nada, ninguém não sabia de nada. E os manos bateram pé na estrada outra vez, varando os domínios imperiais. O silêncio era feio e o desespero também. De vez em quando Macunaíma parava pensando na marvada... Que desejo batia nele! Parava tempo. Chorava muito tempo. As lágrimas escorregando pelas faces infantis, do herói iam lhe batizar a peitaria cabeluda. Então ele suspirava sacudindo a cabecinha: - Qual, manos! Amor primeiro não tem companheiro, não!...

Continuava a caminhar. E por toda a parte recebia homenagens e era sempre seguido pelo séquito sarapintado de jandaias e araras vermelhas.

Uma feita em que deitara numa sombra enquanto esperava os manos pescando, o Negrinho do Pastoreio pra quem Macunaíma rezava diariamente, se apiedou do panema e resolveu ajudá-lo. Mandou o passarinho uirapuru. Quando sinão quando o herói escutou um tatalar inquieto e o passarinho uirapuru pousou no joelho dele. Macunaíma fez um gesto de caceteação e enxotou o passarinho uirapuru. Nem bem minuto passado escutou de novo a bulha e o passarinho pousou na barriga dele. Macunaíma nem se amolou mais. Então o passarinho uirapuru agarrou cantando com doçura e o herói entendeu tudo o que ele cantava. E era que Macunaíma estava desinfeliz porque perdera a muiraquitã na praia do rio quando subia no bacupari. Porém agora, cantava o lamento do uirapuru, nunca mais que Macunaíma havia de ser marupiara não, porque uma traça já engulira a muiraquitã e o mariscador que apanhara a tartaruga tinha vendido a pedra verde pra um regatão peruano se chamando Venceslau Pietro Pietra. O dono do talismã enriquecera e parava fazendeiro e baludo lá em São Paulo, a cidade macota lambida pelo igarapé Tietê.

Dito isto o passarinho uirapuru executou uma letra no ar e desapareceu. Quando os manos chegaram da pesca Macunaíma falou pra eles: - Ia andando por um caminho negaceando um catingueiro e vai, presenciei um friúme no costado. Botei a mão e saiu uma lacraia mansa que me falou toda a verdade.

Então Macunaíma contou o paradeiro da muiraquitã e disse prós manos que estava disposto a ir em São Paulo procurar esse tal Venceslau Pietro Pietra e retomar o tembetá roubado.

- ... ei cascavel faça ninho si eu não topo com a muiraquitã! Si vocês venham comigo muito que bem, si não, homem, antes só do que mal acompanhado! Mas eu tenho opinião de sapo e quando encasqueto uma coisa agüento firme no toco. Hei de ir só pra tirar a prosa do passarinho uirapuru, minto! da lacraia.

Depois que discursou Macunaíma deu uma grande gargalhada imaginando na peça que pregava no passarinho. Maanape e Jiguê resolveram ir com ele.

Macunaíma, VI A FRANCESA E O GIGANTE

Maanape gostava muito de café e Jiguê muito de dormir. Macunaíma queria erguer um papiri prós três morarem porém jamais que papiri se acabava. Os puchirões goravam sempre porque Jiguê passava o dia dormindo e Maanape bebendo café. O herói teve raiva. Pegou numa colher, virou-a num bichinho e falou: - Agora você fica sovertida no pó de café. Quando mano Maanape vier beber, morda a língua dele! Então pegando num cabeceiro de algodão, virou-o numa tatorana branca e falou: - Agora você fica sovertida na maqueira. Quando mano Jiguê vier dormir, chupe o sangue dele! Maanape já vinha entrando na pensão pra beber café outra vez. O bichinho picou a língua dele. Ai! Maanape fez. Macunaíma bem sonso falou: - Está doendo, mano? Quando bichinho me pica não dói não.

Maanape teve raiva. Atirou o bichinho muito pra longe falando: - Sai, praga! Então Jiguê entrou na pensão pra tirar um corte. O marandová branquinho tanto chupou o sangue dele que até virou rosado.

- Ai! que Jiguê gritou. E Macunaíma: - Está doendo, mano? Ora veja só! Quando tatorana me chupa até gosto.

Jiguê teve raiva e atirou a tatorana longe falando: - Sai, praga! E então os três manos foram continuar a construção do papiri. Maanape e Jiguê ficaram dum lado e Macunaíma do outro pegava os tijolos que os manos atiravam. Maanape e Jiguê estavam tiriricas e desejando se vingar do mano. O herói não maliciava nada. Vai, Jiguê pegou num tijolo, porém pra não machucar muito virou-o numa bola de couro duríssima. Passou a bola pra Maanape qüe estava mais na frente e Maanape com um pontapé mandou ela bater em Macunaíma. Esborrachou todo o nariz do herói.

- Ui! que o herói fez.

Os manos bem sonsos gritaram: - Uai! está doendo, mano! Pois quando bola bate na gente nem não dói! Macunaíma teve raiva e atirando a bola com o pé bem pra longe falou: - Sai, peste! Veio onde estavam os manos: - Não faço mais papiri, pronto! E virou tijolos pedras telhas ferragens numa nuvem de içás que tomou São Paulo por três dias.

O bichinho caiu em Campinas. A tatorana caiu por aí. A bola caiu no campo. E foi assim que Maanape inventou o bicho-do-café, Jiguê a largarta-rosada e Macunaíma o futebol, três pragas.

No outro dia, com o pensamento sempre na marvada, o herói percebeu que xetrara mesmo duma vez e nunca mais que podia aparecer na rua Maranhão porque agora Venceslau Pietro Pietra já o conhecia bem. Imaginou e ali pelas quinze horas teve uma idéia. Resolveu enganar o gigante. Enfiou um membi na goela, virou Jiguê na máquina telefone e telefonou pra Venceslau Pietro Pietra que uma francesa queria falar com ele a respeito da máquina negócios. O outro secundou que sim e que viesse agorinha já porque a velha Ceiuci tinha saído com as duas filhas e podiam negociar mais folgado.

Então Macunaíma emprestou da patroa da pensão uns pares de bonitezas, a máquina ruge, a máquina meia-de-sêda, a máquina combinação com cheiro de cascasacaca, a máquina cinta aromada com capim cheiroso, a máquina decoletê úmida e patchuli, a máquina mitenes, todas essas bonitezas, dependurou dois mangarás nos peitos e se vestiu assim. Pra completar inda barreou com azul de pau campeche os olhinhos de piá que se tornaram lânguidos. Era tanta coisa que ficou pesado mas virou numa francesa tão linda que se defumou com jurema e alfinetou um raminho de pinhão paraguaio no patriotismo pra evitar quebranto. E foi no palácio de Venceslau Pietro Pietra. E Venceslau Pietro Pietra era o gigante Piaimã comedor de gente.

Saindo da pensão Macunaíma topou com um beija-flor com rabo de tesoura. Não gostou da cagüira não e pensou abandonar o randevu porém como promessa é dívida fez um esconjuro e seguiu.

Lá chegado encontrou o gigante no portão, esperando. Depois de muitos salamaleques Piaimã tirou os carrapatos da francesa e levou-a pra uma alcova lindíssima com esteios de acaricoara e tesouras de itaúba. O assoalho era um xadrez de munirapiranga e pau-cetim. A alcova estava mobiliada com as famosas redes brancas do Maranhão. Bem no centro havia uma mesa de jacarandá esculpido arranjada com louça branco-encarnada de Breves e cerâmica de Belém, disposta sobre um toalha de rendas tecidas com fibra de bananeira. Numas bacias enormes originárias das cavernas do rio Cunani fumegava tacacá com tucupi, sopa feita com um paulista vindo dos frigoríficos da Continental, uma jacarezada e polenta. Os vinhos eram um Puro de Ica subidor vindo de Iquitos, um Porto imitação, de Minas, uma caiçuma de oitenta anos, champanha de São Paulo bem gelada e um extrato de jenipapo famanado e ruim como três dias- de chuva. E inda havia dispostos com arte enfeitadeira e muitos recortados de papel, os esplêndidos bombons Falchi e biscoitos do Rio Grande empilhados em cuias dum preto brilhante de cumaté com desenhos esculpidos a canivete, provindas de Monte Alegre.

A francesa sente i numa rede e fazendo gestos graciosos principiou mastigando. Estava com muita fome e comeu bem. Depois tomou um copo de Puro pra rebater e resolveu entrar no assunto de chapéu-de-sol aberto. Foi logo perguntando si o gigante era verdade que possuía uma muiraquitã com forma de jacaré. O gigante foi lá dentro e voltou com um caramujo na mão. E puxou pra fora dele uma pedra verde. Era a muiraquitã! Macunaíma sentiu um frio por dentro de tanta comoção e percebeu que ia chorar. Mas disfarçou bem perguntando si o gigante não queria vender a pedra. Porém Venceslau Pietro Pietra piscou faceiro dizendo que vendida não dava a pedra não. Então a francesa pediu suplicando pra levar a pedra de emprestado pra casa. Venceslau Pietro Pietra mais uma vez piscou faceiro falando que de emprestado não dava a pedra também não: - Você imagina então que vou cedendo assim com duas risadas, francesa? Qual! - Mas eu estou querendo tanto a pedra!...

- Vá querendo! - Pois tanto se me dá como se me dava, regatão! - Regatão uma ova, francesa! Dobre a língua! Colecionador é que é! Foi lá dentro e voltou carregando um grajaú tamanho feito de embira e cheinho de pedra. Tinha turquesas esmeraldas berilos seixos polidos, ferragem com forma de agulha, crisólita pingo-d'água tinideira esmeril lapinha ovo-de-pomba osso-de-cavalo machados facões flechas de pedra lascada, grigris rochedos elefantes petrificados, colunas gregas, deuses egípcios, budas javaneses, obeliscos mesas mexicanas, ouro guianense, pedras ornitomorfas de Iguape, opalas do igarapé Alegre, rubis e granadas do rio Gurupi, itamotingas do rio das Garças, itacolumitos, turmalinas de Vupabuçu, blocos de titânio do rio Piriá, bauxitas do ribeirão do Macaco, fósseis calcáreos de Pirabas, pérolas de Cametá, o rochedo tamanho que Oaque o Pai do Tucano atirou com a sarabatana lá do alto daquela montanha, um litóglifo de Calamare, tinha todas essas pedras no grajaú.

Então Piaimã contou pra francesa que ele era um colecionador célebre, colecionava pedras. E a francesa era Macunaíma, o herói. Piaimã confessou que a jóia da coleção era mesmo a muiraquitã com forma de jacaré comprada por mil contos da imperatriz das icamiabas lá nas praias da lagoa Jaciuruá. E tudo era mentira do gigante. Vai, ele sentou na rede mui rente da francesa, muito! e falou murmuriando que com ele era oito ou oitenta, não vendia não emprestava a pedra mas porém era capaz de dar... "Confrome..." O gigante estava mas era querendo brincar com a francesa. Quando por causa do jeito de Piaimã o herói entendeu o que significava o tal de "conforme", ficou muito inquieto. Matutou: "Será que o gigante imagina que sou francesa mesmo!... Cai fora, peruano senvergonha"! E saiu correndo pelo jardim. O gigante correu atrás. A francesa pulou numa moita pra se esconder porém estava uma pretinha lá. Macunaíma cochilou Pra ela: - Caterina, sai daí sim? Caterina nem gesto. Macunaíma já meio impinimado com ela, cochichou: - Caterina, sai daí que sinão te bato! A mulatinha ali. Então Macunaíma deu um bruto dum tapa na peste e ficou com a mão grudada nela.

- Caterina, me larga minha mão e vai-te embora que te dou mais tapa, Caterina! Caterina era mas uma boneca de cera de carnaúba posta ali pelo gigante. Ficou bem quieta. Macunaíma deu outro tapa com a mão livre e ficou mais preso.

- Caterina, Caterina! me larga minhas mãos e vaite embora pixaim! sinão te dou um pontapé! Deu o pontapé e ficou mais preso ainda. Afinal o herói ficou inteirinho grudado na Catita. Então chegou Piaimã com um cesto. Tirou a francesa da armadilha e berrou pro cesto: - Abra a boca, cesto, abra a vossa grande boca! O cesto abriu a boca e o gigante despejou o herói nele. O cesto fechou a boca outra vez, Piaimã carregou-o e voltou. A francesa em vez de bolsa estava armada com o mênie que serve pra guardar as frechinhas da sarabatana. O gigante deixou o cesto encostado na porta de entrada e afundou casa a dentro pra guardar o mênie entre as pedras da coleção. Porém o mênie era de pano cheirando piche de caça. O gigante desconfiou daquilo e perguntou: - Vossa mãe é tão cheirosa e gordinha que nem você, criatura? E revirou os olhos de gosto. Ele estava maliciando que o mênie era filhinho da francesa. E a francesa era Macunaíma o herói. Lá do cesto ele escutou a pergunta e principiou ficando excessivamente inquieto. "Pois então será mesmo que esse tal de Venceslau imagina que passei por debaixo de algum arco-da-velha pra ter mundado a natureza? te esconjuro, credo!" Então assoprou raiz de cumacá em pó que bambeia cordas, bambeou o amarrilho do cesto e pulou pra fora. Ia saindo quando topou com o jaguará do gigante, que chamava Xaréu, nome de peixe pra não ficar hidrófobo. O herói teve medo e desembestou numa chispada mãe parque adentro. O cachorro correu atrás. Correram. Passaram Já rente à Ponta do Calabouço, tomaram rumo de Guajará Mirim e voltaram pra leste. Em Itamaracá Macunaíma passou um pouco folgado e teve tempo de comer uma dúzia de manga-jasmim que nasceu do corpo de dona Sancha, dizem. Rumaram pra sudoeste e nas alturas de Barbacena o fugitivo avistou uma vaca no alto duma ladeira calçada com pedras pontudas. Lembrou de tomar leite. Subiu esperto pela capistrana pra não cansar porém a vaca era de raça Guzerá muito brava. Escondeu o leitinho pobre. Mas Macunaíma fez uma oração assim:

Valei-me Nossa Senhora, Santo Antônio de Nazaré, A vaca mansa dá leite, A braba dá si quisé!

A vaca achou graça, deu leite e o herói chispou pro sul. Atravessando o Paraná já de volta dos pampas bem que ele queria trepar numa daquelas árvores porém os latidos estavam na cola dele e o herói isso vinha que vinha acochado pelo jaguara. Gritava: - Sai, pau! E desviava de cada castanheira, de cada pau-d'arco, de cada cumpro bom de trepar. Adiante da cidade de Serra no Espírito Santo quase arrebentou a cabeça numa pedra com muitas pinturas esculpidas que não se entendia. De certo era dinheiro enterrado... Porém Macunaíma estava com pressa e frechou pras barrancas da ilha do Bananal. Enfim enxergou um formigueiro de trinta metros abrindo um olho no rés do chão bem na frente. Barafustou subindo pelo buraco a dentro e se encolheu no alto. O jaguara ficou acuando ali.

Então o gigante veio e topou com o jaguara acuando o formigueiro. Bem na entrada a francesa perdera uma correntinha de prata. "Meu tesouro está aqui" murmurou o gigante. Então o jaguara desapareceu. Piaimã arrancou da terra com raiz e tudo uma palmeira inajá e nem deixou sinal no chão. Cortou o grelo do pau e enfiou-o pelo buraco por amor de fazer a francesa sair. Porém jacaré saiu? nem ela! Abriu as pernas e o herói ficou como se diz empalado na inajá. Vendo que a francesa não saía mesmo, Piaimã foi buscar pimenta. Trouxe uma correição das formigas anaquilãs que é pimenta de gigante, botou-as no buraco, elas ferraram no herói. Mas nem assim mesmo a francesa saiu. Piaimã jurou vingança. Pinchou fora as anaquilãs e gritou pra Macunaíma: - Agora que te agarro mesmo porque vou buscar a jararaca Elite! Quando ouviu isso o herói gelou. Com a jararaca ninguém não pode não. Gritou pro gigante: - Espera um bocado, gigante, que já saio. Porém pra ganhar tempo tirou os mangarás do peito e botou na boca do buraco falando: - Primeiro bota isso pra fora, faz favor. Piaimã estava tão furibundo que atirou os mangarás longe. Macunaíma presenciou a raiva do gigante.

Tirou a máquina decoletê, pôs ela na boca do buraco, falando outra vez: - Bota isso pra fora, faz favor.

Piaimã inda atirou o vestido mais longe. Então Macunaíma botou a máquina cinta, depois a máquina sapatos e foi fazendo assim com todas as roupas. O gigante isso já estava fumando de tão danado. Jogava tudo longe sem nem olhar o que era. Então bem de mansinho o herói pôs o sim-sinhô dele na boca do buraco e falou: - Agora me bote fora só mais esta cabaça fedorenta.

Piaimã cego de raiva agarrou no sim-sinhô sem ver o que era e atirou sim-sinhô com herói e tudo légua e meia adiante. E ficou esperando pra sempre enquanto o herói lá longe ganhava os mororós.

Chegou na pensão tomando a bênção de cachorro e chamando gato de tio, só vendo! suando esfolado com fogo nos olhos, botando os bofes pela boca. Descansou um pedaço e como estava arado de fome bateu uma fritada de sururu de Maceió, um pato seco de Marajó molhando a janta com mocororó. Descansou.

Macunaíma estava muito contrariado. Venceslau Pietro Pietra era um colecionador célebre e ele não. Suava de inveja e afinal resolveu imitar o gigante. Porém não achava graça em colecionar pedra não porque já tinha uma imundície delas na terra dele pelos espigões, nos manadeiros nas corredeiras nas seladas e gupiaras altas. E todas essas pedras já tinham sido vespas formigas mosquitos carrapatos animais passarinhos gentes e cunhas e cunhatãs e até as graças das cunhas e das cunhatãs... Praquê mais pedra que é tão pesado de carregar!... Estendeu os braços com moleza e murmurou: - Ai! que preguiça!...

Matutou matutou e resolveu. Fazia uma coleção de palavras-feias de que gostava tanto.

Se aplicou. Num átimo reuniu milietas delas em todas as falas vivas e até nas línguas grega e latina que estava estudando um bocado. A coleção italiana era completa, com palavras pra todas as horas do dia, todos os dias do ano, todas as circunstâncias da vida e sentimentos humanos. Cada bocagem! Mas a jóia da coleção era uma frase indiana que nem se fala.

Macunaíma, VII MACUMBA

Macunaíma estava muito contrariado. Não conseguia reaver a muiraquitã e isso dava ódio. O milhor era matar Piaimã... Então saiu da cidade e foi no mato Fulano experimentar força. Campeou légua e meia e afinal enxergou uma peroba sem fim. Enfiou o braço na sapopemba e deu um puxão pra ver si arrancava o pau mas só o vento sacudia a folhagem na altura porém. "Inda não tenho bastante força não", Macunaíma, refletiu. Agarrou num dente de ratinho chamado crô, fez uma bruta incisão na perna, de preceito pra quem é frouxo e voltou sangrando pra pensão. Estava desconsolado de não ter força ainda e vinha numa distração tamanha que deu uma topada.

Então de tanta dor o herói viu no alto as estrelas c entre elas enxergou Capei minguadinha cercada de névoa. "Quando mingua a Luna não comeces coisa alguma'' suspirou. E continuou consolado.

No outro dia o tempo estava inteiramente frio e o herói resolveu se vingar de Venceslau Pietro Pietra dando uma sova nele pra esquentar. Porém por causa de não ter força tinha mas era muito medo do gigante. Pois então resolveu tomar um trem e ir no Rio de Janeiro se socorrer e Exu diabo em cuja honra se realizava uma macumba no outro dia.

Era junho e o tempo estava inteiramente frio. A macumba se rezava lá no Mangue no zungu da tia Ciata, feiticeira como não tinha outra, mãe-de-santo famanada e cantadeira ao violão. Às vinte horas Macunaíma chegou na biboca levando debaixo do braço o garrafão de pinga obrigatório. Já tinha muita gente lá, gente direita, gente pobre, advogados garçons pedreiros meias-colheres deputados gatunos, todas essas gentes e a função ia principiando. Macunaíma tirou os sapatos e as meias como os outros e enfiou no pescoço a milonga feita de cera de vespa tatucaba e raiz seca de assacu. Entrou na sala cheia e afastando a mosquitada foi de quatro saudar a candomblèzeira imóvel sentada na tripeça, não falando um isto. Tia Ciata era uma negra velha com um século no sofrimento, javevó e galguincha com a cabeleira branca esparramada feito luz em torno da cabeça pequetita. Ninguém mais não enxergava olhos nela, era só ossos duma compridez já sonolenta pendependendo, pro chão de terra.

Vai, um rapaz filho de Ochum, falavam, filho de Nossa Senhora da Conceição cuja macumba era em dezembro, distribuiu uma vela acesa pra cada um dos marinheiros marcineiros jornalistas ricaços gamelas fêmeas empregados-públicos, muitos empregados-públicos! todas essas gentes e apagou o bico de gás alumiando a saleta.

Então a macumba principiou de deveras se fazendo um çairê pra saudar os santos. E era assim: Na ponta vinha o ogã tocador de atabaque, um negrão filho de Ogum, bexiguento e fadistas de profissão, se chamando Olelê Rui Barbosa. Tabaque mexiamexia acertado num ritmo que manejou toda a procissão. E as velas jogaram nas paredes de papel com florzinhas, sombras tremendo vagarentas feito assombração. Atrás do ogã vinha tia Ciata quase sem mexer, só beiços puxando a reza monótona. E então seguiam advogados taifeiros curandeiros poetas o herói gatunos portugas senadores, todas essas gentes dançando e cantando a resposta da reza. E era assim: - Va-mo sa-ra-vá!...

Tia Ciata cantava o nome do santo que tinham de saudar: v. .. .

- Ôh Olorung! E a gente secundando: - Va-mo sa-ra-vá!...

Tia Ciata continuava: - Ô Boto Tucuchi! E a gente secundando: - Va-mo sa-ra-vá!...

Docinho numa reza mui monótona.

- Ô Iemanjá! Anamburucu! e Ochum! três Mães-d'água! - Va-mo sa-ra-vá!...

Assim. E quando a tia Ciata parava gritando com gesto imenso: - Sai Exu! porque Exu era o diabo-coxo, um capiroto malévolo, mas bom porém pra fazer malvadezas, era um tormento na sala uivando: - Uuum!... uuum!... Exu! Nosso padre Exu...! E o nome do diabo reboava com estrondo diminuindo o tamanhão da noite fora. O çairê continuava: - Ôh Rei Nagô! - Va-mo sa-ra-vá!... Docinho na reza monótona.

- Ôh Baru! - Va-mo sa-ra-vá!...

Quando sinão quando tia Ciata parava gritando com gesto imenso: - Sai Exu! porque Exu era o pé-de-pato, um jananaíra malévolo. E de novo era o tormento na sala uivando: - Uuuum!... Exu! Nosso padre Exu!...

E o nome do diabo reboava com estrondo encurtando o tamanho da noite.

- Ôh Oxalá! - Va-mo sa-ra-vá!...

Era assim. Saudaram todos os santos da pagelança, o Boto Branco que dá os amores Xangô, Omulu, Iroco Ochosse, a Boiúna Mãe feroz, Obatalá que dá força pra brincar muito, todos esses santos e o çairê se acabou. Tia Ciata sentou na tripeça num canto e toda aquela gente suando, médicos padeiros engenheiros rábulas polícias criadas focas assassinos, Macunaíma, todos vieram botar as velas no chão rodeando a tripeça. As velas jogaram no teto a sombra da mãe-de-santo imóvel. Já quase todos tinham tirado algumas roupas e o respiro ficara chiado por causa do cheiro de mistura budum coty pitium e o suor de todos. Então veio a vez de beber. E foi lá que Macunaíma provou pela primeira vez o cachiri temível cujo nome é cachaça. Provou estalando com a língua feliz e deu uma grande gargalhada.

Depois da bebida, entre bebidas, seguiram as rezas de invocação. Todos estavam inquietos ardentes desejando que um santo viesse na macumba daquela noite. Fazia já tempo que nenhum não vinha por mais que os outros pedissem. Porque a macumba da tia Ciata não era que-nem essas macumbas falsas não, em que sempre o pai-de-terreiro fingia vir Xangô Ochosse qualquer, pra contentar os macumbeiros. Era uma macumba séria e quando santo aparecia, aparecia de deveras sem nenhuma falsidade. Tia Ciata não permitia dessas desmoralizações no zungu dela e fazia mais de doze meses que Ogum nem Exu não apareciam no Mangue. Todos desejavam que Ogum viesse. Macunaíma queria Exu só pra se vingar de Venceslau Pietro Pietra.

Entre golinhos de abrideira, uns de joelhos outros de quatro, todas essas gentes seminuas rezavam em torno da feiticeira pedindo a aparição dum santo. À meia-noite foram lá dentro comer o bode cuja cabeça e patas já estavam lá no pegi, na frente da imagem de Exu que era um tacuru de formiga com três conchas fazendo olhos e boca. O bode fora morto em honra do diabo e salgado com pó de chifre e esporão de galo-de-briga. A mãe-de-santo puxou a comilança com respeito e três pelossinais de atravessado. Toda a gente vendedores bibliófilos pés-rapados acadêmicos banqueiros, todas essas gentes dançando em volta da mesa cantavam: Bamba querê Sai Aruê Mongi gongo Sai Orobô, Êh!...

ôh mungunzá Bom acaçá Vancê nhamanja De pai Guenguê, Êh!...

E conversando pagodeando devoraram o bode consagrado e cada qual buscando o garrafão de pinga dele porque ninguém não podia beber no de outro, todos beberam muita caninha, muita! Macunaíma dava grandes gargalhadas e de repente derrubou vinho na mesa. Era sinal de alegrão pra ele e todos imaginavam que o herói era o predestinado daquela noite santa. Não era não.

Nem bem reza recomeçou se viu pular no meio da saleta uma fêmea obrigando todos a silêncio com o gemido meio choro e puxar canto novo. Foi um tremor em todos e as velas jogaram a sombra de cunha que nem monstro retorcido procanto do teto, era Exu! Ogã pelejava batendo tabaque pra perceber os ritmos doidos do canto novo, canto livre, de notas afobadas cheio de saltos difíceis, êxtase maluco baixinho tremendo de fúria. E a polaca muito pintada na cara, com as alças da combinação arrebentadas estremecia no centro da saleta, já com as gorduras quasi inteiramente nuas. Os peitos dela balangavam batendo nos ombros na cara e depois na barriga, juque! com estrondo. E a ruiva cantando cantando. Afinal a espuminha rolou dos beiços desmanchados, ela deu um grito que diminuiu o tamanhão da noite mais, caiu no santo e ficou dura.

Passou um tempo de silêncio sagrado. Então tia Ciata se levantou da tripeça que uma mazombinha substituiu no sufragante por um banco novo nunca sentado, agora pertencendo pra outra. A mãe-de-terreiro veio vindo veio vindo. Ogã vinha com ela. Todos os outros estavam de pé se achatando nas paredes. Só tia Ciata veio vindo veio vindo e chegou junto do corpo duro da polaca no centro da saleta ali. A feiticeira tirou a roupa ficou nua, só com os colares os braceletes os brincos de contas de prata pingando nos ossos. Foi tirando da cuia que Ogã pegava, o sangue coalhado do bode comido e esfregando a pasta na cabeça da balalaó. Mas quando derramou o efém verdento em riba, a dura se estorceu gemida e o cheiro iodado embebedou o ambiente. Então a mãe-de-santo entoou a reza sagrada de Exu, melopéia monótona.

Quando acabou, a fêmea abriu os olhos, principiou se movendo bem diferente de já-hoje e não era mais fêmea era o cavalo do santo, era Exu. Era Exu, o romãozinho que viera ali com todos pra macumbar.

O par de nuas executava um jongo improvisado e festeiro que ritmavam os estralos dos ossos da tia, os juques dos peitos da gorda e o ogã com batidos chatos. Todos estavam nus também e se esperava a escolha do Filho de Exu pelo grande Cão presente. Jongo temível. Macunaíma fremia de esperança querendo o cariapemba pra pedir uma tunda em Venceslau Pietro Pietra. Não se sabe o que deu nele de sopetão, entrou gingando no meio da sala derrubou Exu e caiu por cima brincando com vitória. E a consagração do Filho de Exu novo era celebrada por licenças de todos e todos se urarizaram em honra do filho novo do icá.

Terminada a cerimônia o diabo foi conduzido pra tripeça, principiando a adoração. Os ladrões os senadores os jecas os negros as senhoras os futebóleres, todos, vinham se rojando por debaixo do pó alaranjando a saleta e depois de batida a cabeça com o lado esquerdo no chão, beijavam os joelhos beijavam todo o corpo do uamoti. A polaca vermelha tremendo rija pigando espuminha da boca em que todos molhavam o mata-piolho pra se benzerem de atravessado, gemia uns roncos regougados meio choro meio gozo e não era polaca mais, era Exu, o jurupari mais macanudo daquela religião.

Depois que todos beijaram adoraram e se benzeram muito, foi a hora dos pedidos e promessas. Um carniceiro pediu pra todos comprarem a carne doente dele e Exu consentiu. Um fazendeiro pediu pra não ter mais saúva nem maleita no sítio dele e Exu se riu falando que isso não consentia não. Um namorista pediu pra pequena dele conseguir o lugar de professora municipal pra casarem e Exu consentiu. Um médico fez um discurso pedindo pra escrever com muita elegância a fala portuguesa e Exu não consentiu. Assim. Afinal veio a vez de Macunaíma o filho novo do fute. E Macunaíma falou: - Venho pedir pra meu pai por causa que estou muito contrariado.

- Como se chama? perguntou Exu.

- Macunaíma, o herói.

- Uhum... o maioral resmungou, nome principiado por Ma tem má-sina...

Mas recebeu com carinho o herói e prometeu tudo o que ele pedisse porque Macunaíma era filho. E o herói pediu que Exu fizesse sofrer Venceslau Pietro Pietra que era o gigante Piaimã comedor de gente.

Então foi horroroso o que se passou. Exu pegou três pauzinhos de erva-cidreira benta por padre apóstata, jogou pro alto, fez encruzilhada, mandando o eu de Venceslau Pietro Pietra vir dentro dele Exu pra apanhar. Esperou um momento, o eu do gigante veio, entrou dentro da fêmea, e Exu mandou o filho dar a sova no eu que estava encarnado no corpo polaco. O herói pegou uma tranca e chegou-a em Exu com vontade. Deu que mais deu. Exu gritava: - Me espanca devagar Que isto dói dói dói! Também tenho família E isto dói dói dói!

Enfim roxo de pancada sangrando pelo nariz pela boca pelos ouvidos caiu desmaiando no chão. E era horroroso... Macunaíma ordenou que o eu do gigante fosse tomar um banho salgado e fervendo e o corpo de Exu fumegou molhando o terreno. E Macunaíma ordenou que o eu do gigante fosse pisando vidro através dum mato de urtiga e agarra-compadre até as grunhas da serra dos Andes pleno inverno e o corpo de Exu sangrou com lapos de vidro, unhadas de espinho e queimaduras de urtiga, ofegando de fadiga e tremendo de tanto frio. Era horroroso. E Macunaíma ordenou que o eu de Venceslau Pietro Pietra recebesse o guampaço dum marruá, o coice dum bagual, a dentada dum jacaré e os ferrões de quarenta vezes quarenta mil formigas-de-fogo e o corpo de Exu retorceu sangrando empolando na terra, com uma carreira de dentes numa perna, com quarenta vezes quarenta mil ferroadas de formiga na pele já invisível, com a testa quebrada pelo casco dum bagual e um furo de aspa aguda na barriga. A saleta se encheu dum cheiro intolerável. E Exu gemia:

- Me chifra devagar Que isto dói dói dói! Também tenho família E isto dói dói dói!

Macunaíma ordenou muito tempo muitas coisas assim e tudo o eu de Venceslau Pietro Pietra agüentou pelo corpo de Exu. Afinal a vingança do herói não pôde inventar mais nada, parou. A fêmea só respirava levinho largada no chão de terra. Teve um silêncio fatigado. E era horroroso.

Lá no palácio da rua Maranhão em São Paulo tinha um correcorre sem parada. Vinham médicos veio a Assistência todos estavam desesperados. Venceslau Pietro Pietra sangrava todo urrando. Mostrava uma chifrada na barriga, quebrou a testa que parecia coice de potro, queimado enregelado mordido e todo cheio das manchas e galos duma tremendérrima sova de pau.

Na macumba continuava o silêncio de horror. Tia Ciata veio maneira e principiou rezando a reza maior do diabo. Era a reza sacrílega entre todas, que se errando uma palavra dá morte, a reza do Padre Nosso Exu, e era assim: - Padre Exu achado nosso que vós estais no trezeno inferno da esquerda de baixo, nóis te queremo muito, nóis tudo! - Quereremos! quereremos! - ... O pai nosso Exu de cada dia nos dai hoje, seja feita vossa vontade assim também no terreiro da sanzala que pertence pro nosso padre Exu, por todo o sempre que assim seja, amém!...

Glória pra pátria gêge de Exu! - Glória pro fio de Exu! Macunaíma agradeceu. A tia acabou: - Chico-t-era um príncipe gege que virou nosso padre Exu dos século seculóro pra sempre que assim seja, amém.

- Pra sempre que assim seja, amém! Exu ia sarando sarando, tudo foi desaparecendo por encanto quando a caninha circulou e o corpo da polaca virou são outra vez. Se escutou uma bulha tamanha e tomou o espaço um cheiro de breu queimado enquanto a fêmea deitava pela boca um anel de azeviche. Então voltou do desmaio vermelha gorda só que mui fatigada e agora estava só a polaca ali, Exu tinha ido embora.

E pra acabar todos fizeram a festa juntos comendo bom presunto e dançando um samba de arromba em que todas essas gentes se alegraram com muitas pândegas liberdosas. Então tudo acabou se fazendo a vida real. E os macumbeiros, Macunaíma, Jaime Ovalle, Dodô, Manu Bandeira, Blaise Cendrars, Ascenso Ferreira, Raul Bopp,

Macunaíma, VIII VEI, A SOL

Macunaíma ia seguindo e topou com a árvore Volomã bem alta. Num galho estava um pitiguari que nem bem enxergou o herói, se desgoelou cantando - "Olha no caminho quem vem! Olha no caminho quem vem!" Macunaíma olhou pra cima com intenção de agradecer mas Volomã estava cheinha de fruta. O he rói vinha dando horas de tanta fome e a barriga dele empacou espiando aquelas sapotas sapotilhas sapotis bacuris abricôs mucajás miritis guabijus melancias ariticuns, todas essas frutas.

- Volomã, me dá uma fruta, Macunaíma pediu. O pau não quis dar. Então o herói gritou duas vezes: - Boiôiô, boiôiô! quizama quizu! Caíram todas as frutas e ele comeu bem. Volomã ficou com ódio. Pegou o herói pelos pés e atirou-o pra além da baía de Guanabara numa ilhota deserta, ha bitada antigamente pela ninfa Alamoa que veio com os Holandeses. Macunaíma pendia tanto de fadiga que pe gou no sono durante o pulo. Caiu dormindo em baixo duma palmeirinha guairô muito aromada onde um uru bu estava encarapitado.

Ora o pássaro careceu de fazer necessidades, fez e o herói ficou escorrendo sujeira de urubu. Já era de madrugadinha e o. tempo estava inteiramente frio. Ma cunaíma acordou tremendo, todo enlambuzado. Assim mesmo examinou bem a pedra mirim da ilhota pra ver si não havia alguma cova com dinheiro enterrado. Não havia não. Nem a correntinha encantada de prata que indica pro escolhido, tesouro de Holandês. Havia só as formigas jaquitaguas ruivinhas.

Então passou Caiuanogue, a estrêla-da-manhã. Macunaíma já meio enjoado de tanto viver pediu pra ela que o carregasse pro céu. Caiuanogue foi se che gando porém o herói fedia muito.

- Vá tomar banho! ela fez. E foi-se embora. Assim nasceu a expressão "Vá tomar banho!" que os Brasileiros empregam se referindo a certos imigran tes europeus.

Vinha passando Capei, a Lua. Macunaíma gritou pra ela: - Sua bênção, dindinha Lua! - Uhum... que ela secundou.

Então ele pediu pra Lua que o carregasse pra ilha de Marajó. Capei veio chegando porém Macunaíma estava mesmo fedendo por demais.

- Vá tomar banho! ela fez. E foi-se embora. E a expressão se fixou definitivamente. Macunaíma gritou pra Capei que pelo menos desse um foguinho pra ele aquecer.

- Peça no vizinho! ela fez apontando pra Sol que já vinha lá no longe remando pelo paraná guaçu. E foi-se embora.

Macunaíma tremia que mais tremia e o urubu sem pre fazendo necessidade em riba dele. Era por causa da pedra ser muito pequetitinha. Vei vinha chegando vermelha e toda molhada de suor. E Vei era a Sol. Foi muito bom pra Macunaíma porque lá em casa ele sem pre dera presentinhos de bô-lo-de-aipim pra Sol lamber secando.

Vei tomou Macunaíma na jangada que tinha uma vela cor-de-ferrugem pintada com muruci e fez as três filhas limparem o herói, catarem os carrapatos e exa minarem si as unhas dele estavam limpas. E Macunaí ma ficou alinhado outra vez. Porém por causa dela es tar velha vermelha e tão suando o herói não malíciava que a coroca era mesmo a Sol, a boa da Sol poncho dos probres. Por isso pediu pra ela que chamasse Vei com seu calor porque ele estava lavadinho bem mas tre mendo de tanto frio. Vei era a Sol mesmo e andava matinando fazer Macunaíma genro dela. Só que ainda não podia aquentar ninguém não, porque era cedo por demais, não tinha força. Pra distrair a espera assobiou dum jeito e as três filhas dela fizeram muitos cafunés e cosquinhas no corpo todo do herói.

Ele dava risadas chatas, se espremendo de cóce gas e gostando muito. Quando elas paravam pedia mais estorcendo já de antegozo. Vei pôs reparo na senvergonhice do herói, teve raiva. Foi ficando sem vontade de tirar fogo do corpo e esquentar ninguém. Então as cunhatãs agarraram na mãe, amarraram bem ela e Macunaíma dando muitos munhecaços na barriga da bruaca saiu que saiu um fogaréu por detrás e todos se aquentaram.

Principiou um calorão que tomou a jangada, se alastrou nas águas e dourou a face limpa do ar. Ma cunaíma deitado na jangada lagarteava numa quebreira azul. E o silêncio alargando tudo...

- Ai... que preguiça...

O herói suspirou. Se ouvia o murmurejo da onda, só. Veio um enfaro feliz subindo pelo corpo de Ma cunaíma, era bom... A cunhatã mais moça batia o urucungo que a mãe trouxera da África. Era vasto o paraná e não tinha uma nuvem na gupiara elevada do céu. Macunaíma cruzou as munhecas no alto por de trás fazendo um cabeceiro com as mãos e enquanto a filha-da-luz mais velha afastava os mosquitos borrachudos em quantidade, a terceira chinoca com as pontas das trancas fazia estremecer de gosto a barriga do he rói. E era se rindo em plena felicidade, parando pra gozar de estrofe em estrofe que ele cantava assim: Quando eu morrer não me chores, Deixo a vida sem sodade; - Mandu sarará,

Tive pro pai o desterro, Por mãe a infelicidade, - Mandu sarará,

Papai chegou e me disse: - Não hás de ter um amor! - Mandu sarará,

Mamãe veio e me botou Um colar feito de dor, - Mandu sarará,

Que o tatu prepare a cova Dos seus dentes desdentados, - Mandu sarará,

Para o mais desinfeliz De todos os desgraçados, - Mandu sarará...

Era bom... O corpo dele relumeava de ouro cinzando nos cristaizinhos do sal e por causa do cheiro da maresia, por causa do remo pachorrento de Vei, e com a barriga assim mexemexendo com cosquinhas de mu lher, ah!... Macunaíma gozou do nosso gozo, ah!... "Puxavante! que filha-duma?... de gostosura, gente!" exclamou. E cerrando os olhos malandros, com a boca rindo num riso moleque safado de vida boa o herói gostou gostou e adormeceu.

Quando a jacumã de Vei não embalou mais o sono dele Macunaíma acordou. Lá no longe se perce bia mais que tudo um arranhacéu cor-de-rosa. A jan gada estava abicada na caiçara da maloca sublime do Rio de Janeiro.

Ali mesmo na beira d'água tinha um cerradão comprido cheinho da árvore pau-brasil e com palácios de cor nos dois lados. E o cerradão era a avenida Rio Branco. Aí que mora Vei a Sol com suas três filhas de luz. Vei queria que Macunaíma ficasse genro dela por que afinal das contas ele era um herói e tinha dado tanto bôlo-de-aipim pra ela chupar secando, falou: - Meu genro: você carece de casar com uma das minhas filhas. O dote que dou pra ti é Oropa França e Bahia. Mas porém você tem de ser fiel e não andar assim brincando com as outras cunhas por aí.

Macunaíma agradeceu e prometeu que sim juran do pela memória da mãe dele. Então Vei saiu com as três filhas pra fazer o dia no cerradão, ordenando mais uma vez que Macunaíma não saísse da jangada pra não andar brincando com as outras cunhas por aí. Macunaí ma tornou a prometer, jurando outra vez pela mãe.

Nem bem Vei com as três filhas entraram no cer radão que Macunaíma ficou cheio de vontade de ir brincar com uma cunha. Acendeu um cigarro e a von tade foi subindo. Lá por debaixo das árvores passavam muitas cunhas cunhe cunhe se mexemexendo com ta lento e formosura.

- Pois que fogo devore tudo! Macunaíma excla mou. Não sou frouxo agora pra mulher me fazer mal! E uma luz vasta brilhou no cérebro dele. Se er gueu na jangada e com os braços oscilando por cima da pátria decretou solene: - POUCA SAÚDE E MUITA SAÚVA, OS MALES DO BRASIL SÃO! Pulou da jangada no sufragante, foi fazer conti nência diante da imagem de Santo Antônio que era ca pitão de regimento e depois deu em cima de todas as cunhas por aí. Logo topou com uma que fora varina lá na terrinha do compadre chegadinho-chegadinho e inda cheirava no-mais! um fartum bem de peixe. Macunaí ma piscou pra ela e os dois vieram na jangada brincar. Fizeram. Bastante eles brincaram. Agora estão se rindo um pro outro.

Quando Vei com suas três filhas chegaram do dia e era a bôca-da-noite as moças que vinham na frente encontraram Macunaíma e a Portuguesa brincando mais. Então as três filhas de luz se zangaram: - Então é assim que se faz, herói! Pois nossa mãe Vei não falou pra você não sair da jangada e não ir brincar com as outras cunhas por aí?! - Estava muito tristinho! o herói fez.

- Não tem que tristinho nem mane tristinho, he rói! Agora que você vai tomar um pito de nossa mãe Vei! E viraram muito zangadas pra velha: - Veja, nossa mãe Vei, o que vosso genro fez! Nem bem a gente foi no cerradão que ele escapuliu, deu em cima duma boa, trouxe ela na vossa jangada e brin caram até mais não! Agora estão se rindo um pro outro! Então a Sol se queimou e ralhou assim: Ara ara, ara, meus cuidados! Pois não falei pra você não dar em cima de nenhuma cunha não!... Fa lei sim! E inda por cima você brinca com ela na jan gada minha e agora estão se rindo um pro outro! - Estava muito tristinho! Macunaíma repetiu.

- Pois si você tivesse me obedecido casava com uma das minhas filhas e havia de ser sempre moço e bonitão. Agora você fica pouco tempo moço talqualmente os outros homens e depois vai ficando mocetudo e sem graça nenhuma.

Macunaíma sentiu vontade de chorar. Suspirou.

- Si eu subesse...

- O "si eu subesse" é santo que nunca não valeu pra ninguém, meus cuidados! Você o que é mas é mui to safadinho, isso sim! Não te dou mais nenhuma das minhas filhas não! Daí Macunaíma pisou nos calos também: - Pois nem eu queria nenhuma das três, sabe! Três, diabo fez! Então Vei com as três filhas foram pedir pouso num hotel e deixaram Macunaíma dormir com a Portuga jangada.

Quando foi ali pela hora antes da madrugada, veio a Sol com as moças pra darem o passeio na baía e en contraram Macunaíma com a Portuguesa inda pegados no sono. Vei acordou os dois e fez presente da pedra Vató pra Macunaíma. E a pedra Vató dá fogo quando a gente quer. E lá se foi a Sol com as três filhas de luz.

Macunaíma inda passou esse dia brincando com a varina pela cidade. Quando foi de-noite eles estavam dormindo num banco do Flamengo quando chegou uma assombração medonha. Era Mianiquê-Teibê que vinha pra enguilir o herói. Respirava com os dedos, escutava pelo umbigo e tinha os olhos no lugar das mamicas. A boca era duas bocas e estavam escondidas na dobra interior dos dedos dos pés. Macunaíma acordou com o cheiro da assombração e jogou no viado Flamengo fora. Então Mianiquê-Teibê comeu a varina e se foi.

No outro dia Macunaíma não achou mais graça na capital da República. Trocou a pedra Vató por um retrato no jornal e voltou pra taba do igarapé Tietê.

Macunaíma, IX CARTA PRAS ICAMIABAS

Às mui queridas súbditas nossas, Senhoras Ama zonas.

Trinta de Maio de Mil Novecentos e Vinte e Seis, São Paulo.

Senhoras: Não pouco vos surpreenderá, por certo, o endereço e a literatura desta missiva. Cumpre-nos, entretanto, iniciar estas linhas de saudades e muito amor, com de sagradável nova. É bem verdade que na boa cidade de São Paulo - a maior do universo, no dizer de seus pro lixos habitantes - não sois conhecidas por "icamiabas", voz espúria, sinão que pelo apelativo de Amazonas; e de vós, se afirma, cavalgardes ginetes belígeros e virdes da Hélade clássica; e assim sois chamadas. Muito nos pesou a nós, Imperator vosso, tais dislates da erudição porém heis de convir conosco que, assim, ficais mais heróicas e mais conspícuas, tocadas por essa platina respeitável da tradição e da pureza antiga.

Mas não devemos esperdiçarmos vosso tempo fero, e muito menos conturbarmos vosso entendimento, com notícias de mau calibre; passemos pois, imediato, ao relato dos nossos feitos por cá.

Nem cinco sóis eram passados que de vós nos par tíramos, quando a mais temerosa desdita pesou sobre Nós. Por uma bela noite dos idos de maio do ano translato, perdíamos a muiraquitã; que ou trem grafara muraquitã, e, alguns doutos, ciosos de etimologias esdrú xulas, ortografam muyrakitan e até mesmo muraquéitã, não sorriais! Haveis de saber que este vocábulo, tão familiar às vossas trompas de Eustáquio, é quase desconhecido por aqui. Por estas paragens mui civis, os guerreiros chamam-se polícias, grilos, guardas-cívicas, boxistas, legalistas, masorqueiros, etc; sendo que alguns desses termos são neologismos absurdos - ba gaço nefando com que os desleixados e petimetres cons purcam o bom falar lusitano. Mas não nos sobra já va gar para discretearmos "sub tegmine fagi", sobre a lín gua portuguesa, também chamada lusitana. O que vos interessará mais, por sem dúvida, é saberdes que os guerreiros de cá não buscam mavórticas damas para o enlace epitalâmico; mas antes as preferem dóceis e facilmente trocáveis por pequeninas e voláteis folhas de papel a que o vulgo chamará dinheiro - o "curriculum vitae" da Civilização, a que hoje fazemos ponto de hon ra em pertencermos. Assim a palavra muiraquitã, que fere já os ouvidos latinos do vosso Imperador, é desco nhecida dos guerreiros, e de todos em geral que por estas partes respiram. Apenas alguns "sujeitos de im portância em virtude e letras", como já dizia o bom velhinho e clássico frei Luís de Sousa, citado pelo dou tor Rui Barbosa, ainda sobre as muiraquitãs projetam as suas luzes, para aquilatá-las de medíocre valia, ori ginárias da Ásia, e não de vossos dedos, violentos no polir.

Estávamos ainda abatido por termos perdido a nos sa muiraquitã, em forma de sáurio, quando talvez por algum influxo metapsíquico, ou, qui lo sá, provocado por algum libido saudoso, como explica o sábio tudesco, doutor Sigmundo Freud (lede Fróide), se nos depa rou em sonho um arcanjo maravilhoso. Por ele sou bemos que o talismã perdido estava nas diletas mãos do doutor Venceslau Pietro Pietra, súbdito do Vice-Reinado do Peru, e de origem francamente florentina, como os Cavalcântis de Pernambuco. E como o doutor demorasse na ilustre cidade anchietana, sem demora nos partimos para cá, em busca do velocino roubado.

As nossas relações actuais com o doutor Venceslau são as mais lisonjeiras possíveis; e sem dúvida mui para breve recebereis a grata nova de que hemos reavido o talismã: e por ela vos pediremos alvíçaras.

Porque, súbditas dilectas, é incontestável que Nós, Imperator vosso, nos achamos em precária condição. O tesouro que daí trouxemos, foi-nos de mister conver tê-lo na moeda corrente do país; e tal conversão muito nos há dificultado o mantenimento, devido às oscilações do Câmbio e à baixa do cacau.

Sabereis mais que as donas de cá não se derribam a pauladas, nem brincam por brincar, gratuitamente', senão que a chuvas do vil metal, repuxos brasonados de champagne, e uns monstros comestíveis, a que, vul garmente, dão o nome de lagostas. E quê monstros en cantados, senhoras Amazonas!!! Duma carapaça poli da e sobrosada, feita a modo de casco de nau, saem braços, tentáculos e cauda remígeros, de muitos feitios; de modo que o pesado engenho, deposto num prato de porcelana de Sêvres, se nos antoja qual velejante trirreme a bordeisjar água de Nilo, trazendo no bojo o corpo inestimável de Cleópatra.

Ponde tento na acentuação deste vocábulo, senho ras Amazonas, pois muito nos pesara não preferísseis conosco, essa pronúncia, condizente com a lição dos clássicos, à pronúncia Cleópatra, dicção mais moderna; e que alguns vocabulistas levianamente subscrevem, sem que se apercebam de que é ganga desprezível, que nos trazem, com o enxurro de França, os galiparlas de má morte.

Pois é com esse dedicado monstro, vencedor dos mais delicados véus paladinos, que as donas de cá tom bam nos leitos nupciais. Assim haveis de compreender de que alvíçaras falamos; porque as lagostas são carís simas, caríssimas súbditas, e algumas hemos nós adquiridas por sessenta contos e mais; o que, convertido em nossa moeda tradicional, alcança a vultosa soma de oitenta milhões de bagos de cacau... Bem podereis conceber, pois, quanto hemos já gasto; e que já estamos carecido do vil metal, para brincar com tais difíceis do nas. Bem quiséramos impormos à nossa ardida chama uma abstinência, penosa embora, para vos pouparmos despesas; porém que ânimo forte não cedera ante os encantos e galanteios de tão agradáveis pastoras! Andam elas vestidas de rutilantes jóias e panos fi níssimos, que lhes acentuam o donaire do porte, e mal encobrem as graças, que, a de nenhuma outra cedem pelo formoso do torneado e pelo tom. São sempre alvíssimas as donas de cá; e tais e tantas habilidades de monstram, no brincar, que enumerá-las, aqui seria fàstiendo porventura; e, certamente, quebraria os manda mentos de discreção, que em relação de Imperator para súbditas se requer. Que beldades! Que elegância! Que cachet! Que degagé flamífero, ignívomo, devorador!! Só pensamos nelas, muito embora não nos descuidemos, relapso, da nossa muiraquitã.

Nós, nos parece ilustres Amazonas, que assaz ganharíeis em aprenderdes com elas, as condescendências, os brincos e passes do Amor. Deixaríeis então a vossa orgulhosa e solitária Lei, por mais amáveis mesteres, em que o Beijo sublima, as Volúpias encandecem, e se demonstra gloriosa, "urbi et orbe", a subtil força do Odor di Femina, como escrevem os italianos.

E já que nos detivemos neste delicado assunto, não no abandonaremos sem mais alguns reparos, que vos poderão ser úteis. As donas de São Paulo, sobre serem mui formosas e sábias, não se contentam com os dons e excelência que a Natura lhes concedeu; assaz se preo cupam elas de si mesmas; e não puderam acabarem consigo, que não mandassem vir de todas as partes do globo, tudo o que de mais sublimado e gentil acrisolou a ciência fescenina, digo, feminina das civilizações avitas. Assim é que chamaram mestras da velha Europa, e sobretudo de França, e com elas aprenderam a pas sarem o tempo de maneira bem diversa da vossa. Ora se alimpam, e gastam horas nesse delicado mester, ora encantam os convívios teatrais da sociedade, ora não fazem coisa alguma; e nesses trabalhos passam elas o dia tão entretecidas e afanosas que, em chegando a noute, mal lhes sobra vagar para brincarem e presto se entregam nos braços de Orfeu, como se diz. Mas heis de saber, senhoras minhas, que por cá dia e noute divergem singularmente do vosso horário belígero; o dia começa quando para vós é o pino dele, e a noute, quando estais no quarto sono vosso, que, por derradeiro, é o mais reparador.

Tudo isso as donas paulistanas aprenderam com as mestras de França; e mais o polimento das unhas e cres cimento delas, bem como aliás "horjesco referens", das demais partes córneas dos seus companheiros legais. Deixai passe esta flórida ironia! E muito há que vos diga ainda sobre o jeito com que cortam as comas, de tal maneira gracioso e viril, que mais se assemelham elas a efebos e Antinous, de perversa memória, que a matronas de tão directa progênie latina. Todavia, convireis conosco, no desacerto de longas trancas por cá, si atenderdes ao que mais atrás ficou dito; pois que os doutores de São Paulo não derribam as suas requestadas pela força, senão que a troco de oiro e de iocustas, as ditas comas são de somenos, acrescendo ainda que assim se amainam os ma les, que tais comas acarretam, de serem moradia e pas to habitual de insectos mui daninho como entre vós se dá.

Pois não contentes de terem aprendido de França, as subtilezas e passes da galanteria à Luís XV, as do nas paulistanas importam das regiões mais inóspitas c que lhes acrescente ao sabor, tais como pezinhos nipônicos, rubis da Índia, desenvolturas norteamericanas; e muitas outras sabedorias e tesoiros internacionais.

Já agora vos falaremos ainda, bem que por alto, dum nitente armento de senhoras, originárias da Polô nia, que aqui demoram e imperam generosamente. São elas mui alentadas no porte e mais numerosas que as areias do mar oceano. Como vós, senhoras Amazonas, tais damas formam um gineceu; estando os homens que em suas casas delas habitam, reduzidos escravos e con denados ao vil ofício de servirem. E por isso não se lhes chamam homens, sinão que à voz espúria de garçons respondem; e são assaz polidos e silentes, e sempre do mesmo indumento gravebundo trajam.

Vivem essas damas encasteladas num mesmo lo cal, a que chamam por cá de quarteirão, e mesmo de pensões ou "zona estragada"; sobrelevando notar que a derradeira destas expressões não caberia, por indina nesta notícia sobre as coisas de São Paulo, não fora o nosso anseio de sermos exacto e conhecedor. Porém si, como vós, formam essas queridas senhoras um clã de mulheres, muito de vós se apartam do físico, no gênero de vida e nas ideais. Assim vos diremas que vivem à noute, e se não dão aos afazeres de Marte nem quei mam o destro seio, mas a Mercúrio cortejam tão so mente; e quanto aos seios, deixam-nos envolverem, à feição de gigantescos e flácidos pomos, que, si lhes não acrescentam ao donaire, servem para numerosos e ár duos trabalhos de excelente virtude e prodigiosa excitação.

Ainda lhes difere o físico, tanto ou quanto mons truoso, bem que de amável monstruosidade, por terem elas o cérebro nas partes pudendas, e como tão bem se diz em linguagem madrigalesca, o coração nas mãos. Falam numerosas e mui rápidas línguas; são via jadas e educadíssimas; sempre todas obedientes por igual, embora.ricamente díspares entre si, quais loiras, quais morenas, quais fôsse-maigres, quais rotundas; e de tal sorte abundantes no número e diversidade, que muito nos preocupa a razão, o serem todas e tantas, ori ginais dum país somente. Acresce ainda que a todas se lhes dão o excitante, embora injusto, epíteto de "fran cesas". A nossa desconfiança é que essas damas não se originaram todas da Polônia, porém que faltam à ver dade, e são iberas, itálicas, germânicas, turcas, argenti nas, peruanas, e de todas as outras partes férteis de um e outro hemisfério.

Muito estimaríamos que compartilhásseis da nossa desconfiança, senhoras Amazonas; e que convidásseis também algumas dessas damas para demorarem nas vossas terras e Império nosso, por que aprendais com elas um moderno e mais rendoso gênero de vida, que muito fará avultar os tesoiros do vosso Imperador. E mesmo, si não quiserdes largar mão da vossa solitária Lei, sempre a existência de algumas centenas dessas da mas entre vós, muito nos facilitará o "modus in rebus", quando for no nosso retorno ao Império do Mato Vir gem, cujo este nome, aliás, proporíamos se mudasse para Império da Mata Virgem, mais condizente com a lição dos clássicos.

Todavia para terminar negócio tão principal, hemos por bem advertir-vos dum perigo que essa impor tação acarretara, si não aceitásseis alguns doutores pos santes nos limites do Estado, enquanto dele estivermos apartado. Com serem essas damas mui fogosas e livres; bem pudera pesar-lhes em demasia o seqüestro incon seqüente em que viveis, e, por não perderem elas as ciências e segredos que lhes dão o pão, bem poderiam ir ao extremo de utilizarem-se das bestas feras, dos bogios, dos tapires e dos solertes candirus. E muito mais ainda nos pesaria à consciência e sentimento nobre do dever; que vós, súbditas nossas, aprendásseis com elas certas abusões, tal como foi com as companheiras da gentil declamadora Safo na ilha rósea de Lesbos - vícios esses que não suportam crítica à luz das possi bilidades humanas, e muito menos o escalpelo da rígida e sã moral.

Como vedes, assaz hemos aproveitada esta demora na ilustre terra bandeirante, e si não descuidamos do nosso talismã, por certo que não poupamos esforços nem vil metal, por aprendermos as coisas mais principais desta eviterna civilização latina, por que iniciemos quando for do nosso retorno ao Mato Virgem, uma sé rie de milhoramentos, que, muito nos facilitarão a exis tência, e mais espalhem nossa prosápia de nação culta entre as mais cultas do Universo. E por isso agora vos diremos algo sobre esta nobre cidade, pois que preten demos construir uma igual nos vossos domínios e Im pério nosso.

É São Paulo construída sobre sete colinas, à fei ção tradicional de Roma, a cidade cesárea, "capita" da Latinidade de que provimos; e beija-lhes os pés a grácil e inquieta linfa do Tietê. As águas são magníficas, os ares tão amenos quanto os de Aquisgrana ou de Anver-res, e a área tão a eles igual em salubridade e abundân cia, que bem se pudera afirmar, ao modo fino dos cro nistas, que de três AAA se gera espontaneamente a fauna urbana.

Cidade é belíssima, e grato o seu convívio. Toda cortada de ruas habilmente estreitas e tomadas por es tátuas e lampiões graciosíssimos e de rara escultura; tudo diminuindo com astúcia o espaço de forma tal, que nessas artérias não cabe a população. Assim se obtém o efeito dum grande acúmulo de gentes, cuja estimativa pode ser aumentada à vontade, o que é pro pício às eleições que são invenção dos inimitáveis mi neiros; ao mesmo tempo que os edis dispõem de largo assunto com que ganhem dias honrados e a admiração de todos, com surtos de eloqüência do mais puro es tilo e sublimado lavor.

As ditas artérias são todas recamadas de ricocheteantes papeizinhos e velívolas cascas de fruitos; e em principal duma finíssima poeira, e mui dançarina, em que se despargem diariamente mil e uma espécimens de vorazes macróbios, que dizimam a população. Por essa forma resolveram, os nossos maiores, o problema da circulação; pois que tais insectos devoram as mes quinhas vidas da ralé; e impedem o acúmulo de deso cupados e operários; e assim se conservam sempre as gentes em número igual. E não contentes com essa poeira ser erguida pelo andar dos pedestrianistas e por urrantes máquinas a que chamam "automóveis" e "eléctricos", (empregam alguns a palavra Bond, voz espúria, vinda certamente do inglês) contrataram os diligentes edis, uns antropóides, monstros hipocentáureos azulegos e monótonos, a que congloba o título de Limpeza Pública; que "per amica silencia lunae", quando cessa o movimento e o pó descansa inócuo, saem das suas mansões, e, com os rabos girantes a modo de vassouras cilíndricas, puxadas por muares, soerguem do asfalto a poeira e tiram os insetos do sono, e os concitam à actividade com largos gestos e grita formidanda. Estes afazeres nocturnos são discretamente conduzidos por pequeninas luzes, dispostas de longe em longe, de ma neira a permanecer quase total a escuridade, não per turbem elas os trabalhos de malfeitores e ladrões.

A cópia destes se nos afigura realmente excessiva; e temos que são a única usança que não se coaduna com nosso temperamento, ordeiro e pacífico de seu na tural. Porém, longe de nós qualquer reproche aos admi nistradores de São Paulo, pois sabemos muito bem que aos valerosos Paulistas, são aprazíveis tais malfeitores e suas artes. São os Paulistas gente ardida e avalentoada, e muito afeita às agruras da guerra. Vivem em combates singulares e colectivos, todos armados da ca beça aos pés; assim assaz numerosos são os distúrbios por cá, em que, não raro, tombam na arena da luta, centenas de milhares de heróis, chamados bandeirantes. - Pelo mesmo motivo São Paulo, está dotada de mui aguerrida e vultosa Polícia, que habita palácios bran cos de custosa engenharia. A essa Polícia compete ain da equilibrar os excessos da riqueza pública, por se não desvalorizar o oiro incontável da Nação; e tal diligên cia emprega nesse afã, que, por todos os lados devora os dinheiros nacionais, quer em paradas e roupagens luzidas, quer em ginásticas da recomendável Eugênia, que inda não tivemos o prazer de conhecermos; quer finalmente atacando os incautos burgueses que regres sam do seu teatro, do seu cinema, ou "dão a sua volta de automóvel pelos vergéis amenos que circundam a ca pital. A essa Polícia ainda lhe compete divertir a classe das criadinhas paulistanas; e para seu lustre se diga que o faz com jornaleiro préstimo, em parques, cons truídos "ad hoc", tais como o parque de Dom Pedro Se gundo e o Jardim da Luz. E quando o numerário des sa Polícia avulta, são os seus homens enviados para as rechãs longínquas e menos férteis da pátria, para se rem devorados por súcias de gigantes antropófagos, que infestam a nossa geografia, na inglória tarefa de ruir por terra Governos honestos; e de pleno gosto e assentimento geral da população, como se descrimina das urnas e dos ágapes governamentais. Esses masorqueiros pegam nos polícias, assam-nos e comem-nos ao jeito alemão; e as ossadas caídas na terra maninha são exce lente adubo de futuros cafezais.

Assim tão bem organizados vivem e prosperam os Paulistas na mais perfeita ordem e progresso; e lhes não é escasso o tempo para construírem generosos hos pitais, atraindo para cá todos os leprosos sulamericanos, Mineiros, Paraibanos, Peruanos, Bolivianos, Chilenos, Paraguaios, que, antes de ir morarem nesses lindíssimos leprosários, e serem servidos por donas de duvidosa e decadente beldade - sempre donas! - animam as es tradas do Estado e as ruas da capital, em garridas co mitivas eqüestres ou em maratonas soberbas que são o orgulho de nossa raça desportiva, em cujo conspeito pul sa o sangue das heróicas bigas e quadrigas latinas! Porém, senhoras minhas! Inda tanto nos sobra, por este grandioso país, de doenças e insectos por cui dar! ... Tudo vai num descalabro sem comedimento, e estamos corroídos pelo morbo e pelos miriápodes! Em breve seremos novamente uma colônia da Inglaterra ou da América do Norte!... Por isso e para eterna lem brança destes Paulistas, que são a única gente útil do país, e por isso chamados de Locomotivas, nos demos ao trabalho de metrificarmos um dístico, em que se en cerram os segredos de tanta desgraça:
"POUCA SAÚDE E MUITA SAÚVA, OS MALES DO BRASIL SÃO."

Este dístico é que houvemos por bem escrevermos no livro de Visitantes Ilustres do Instituto Butantã, quando foi da nossa visita a esse estabelecimento famo so na Europa.

Moram os Paulistanos em Palácios alterosos de cin qüenta, cem e mais andares, a que, nas épocas da procreação, invadem umas nuvens de mosquitos pernilongos, de vária espécie, muito ao gosto dos nativos, mor dendo os homens e as senhoras com tanta propriedade nos seus distintivos, que não precisam eles e elas das cáusticas urtigas para as massagens da excitação, tal como entre os selvícolas é de uso. Os pernilongos se encarregam dessa faina; e obram tais milagres que, nos bairros miseráveis, surge anualmente uma incontável multidão de rapazes e raparigas bulhentos, a que cha mamos 'italianinhos"; destinados a alimentarem as fá bricas dos áureos potentados, e a servirem, escravos, o descanso aromático dos Cresos.

Estes e outros multimilionários é que ergueram em torno da urbs as doze mil fábricas de seda, e no recesso dela os famosos Cafés maiores do mundo, todos de obra de talha em jacarandá folhado de oiro, com embutidos de salsas tartarugas.

E o Palácio do Governo é todo de oiro, à feição dos da Rainha do Adriático; e, em carruagens de prata, for radas de peles finíssimas, o Presidente, que mantém muitas esposas, passeia, ao cair das tardes, sorrindo com vagar.

De outras c muitas grandezas vos poderíamos ilus trar, senhoras Amazonas, não fora perlongar demasia do esta epístola; todavia, com afirmar-vos que esta é, por sem dúvida, a mais bela cidade terráquea, muito hemos feito em favor destes homens de prol. Mas cair-nos-iam as faces, si ocultáramos no silêncio, uma curio sidade original deste povo. Ora sabereis que a sua ri queza de expressão intelectual é tão prodigiosa, que falam numa língua e escrevem noutra. Assim chegado a estas plagas hospitalares, nos demos ao trabalho de bem nos inteirarmos da etnologia da terra, e dentre muita surpresa e assombro que se nos deparou, por cer to não foi das menores tal originalidade lingüística. Nas conversas utilizam-se os paulistanos dum linguajar bár baro e multifário, crasso de feição e impuro na vernaculidade, mas que não deixa de ter o seu sabor e força nas apóstrofes, e também nas vozes do brincar. Destas e daquelas nos inteiramos, solícito; e nos será grata em presa vo-las ensinarmos aí chegado. Mas si de tal des prezível língua se utilizam na conversação os naturais desta terra, logo que tomam da pena, se despojam de tanta asperidade, e surge o Homem Latino, de Lineu, exprimindo-se numa outra linguagem, mui próxima da vergiliana, no dizer dum panegirista, meigo idioma, que, com imperecível galhardia, se intitula: língua de Ca mões! De tal originalidade e riqueza vos há-de ser grato ter ciência, e mais ainda vos espantareis com saberdes, que à grande e quase total maioria, nem essas duas lín guas bastam, senão que se enriquecem do mais lídimo italiano, por mais musical e gracioso, e que por todos os recantos da urbs é versado. De tudo nos inteiramos satisfatoriamente, graças aos deuses; e muitas horas hemos ganho, discretando sobre o z do termo Brazil e a questão do pronome "se". Outrossim, hemos adquiri do muitos livros bilíngües, chamados "burros", e o di cionário Pequeno Larousse; e já estamos em condições de citarmos no original latino muitas frases célebres dos filósofos e os testículos da Bíblia.

Enfim, senhoras Amazonas, heis de saber ainda que a estes progressos e luzida civilização, hão elevado esta grande cidade os seus maiores, também chamados de políticos. Com este apelativo se designa uma raça refinadíssima de doutores, tão desconhecidos de vós, que os diríeis monstros. Monstros são na verdade mas na grandiosidade incomparável da audácia, da sapiência, da honestidade e da moral; e embora algo com os ho mens se pareçam, originam-se eles dos reais uirauaçus e muito pouco têm de humanos. Obedecem todos a um imperador, chamado Papai Grande na gíria familiar, e que demora na oceânica cidade do Rio de Janeiro - a mais bela do mundo, na opinião de todos os es trangeiros, e que por meus olhos verifiquei.

Finalmente, senhoras Amazonas e muito amadas súbditas, assaz hemos sofrido e curtido árduos e cons tantes pesares, depois que os deveres da nossa posição, nos apartaram do Império do Mato Virgem. Por cá tu do são delícias e venturas, porém nenhum gozo tere mos e nenhum descanso, enquanto não rehouvermos o perdido talismã. Hemos por bem repetir entretanto que as nossas relações com o doutor Venceslau são as milhores possíveis; que as negociações estão entaboladas e perfeitamente encaminhadas; e bem poderíeis enviar de antemão as alvíçaras que enunciamos atrás. Com pouco o vosso abstêmio Imperador se contenta; si não puderdes enviar duzentas igaras cheias de bagos de ca cau, mandai, cem, ou menos cinqüenta! Recebei a bênção do vosso Imperador e mais saúde e fraternidade. Acatai com respeito e obediência estas mal traçadas linhas; e, principalmente, não vos esque çais das alvíçaras e das polonesas, de que muito hemos mister.

Ci guarde a Vossas Excias.

Macunaíma, Imperator.